Zona Franca: um Curupira pós-moderno?
"A ZFM não cumpriu com o seu propósito inicial na capital nem no interior que, desde a sua implantação, se tornou cada vez mais Estado-dependente"

Neuton Correa, Aldenor Ferreira
Publicado em: 16/09/2023 às 04:00 | Atualizado em: 16/09/2023 às 10:36
A Zona Franca de Manaus (ZFM) tem sido apontada por muitos como a principal “guardiã da floresta amazônica”, a causa primeira dos altos índices de preservação da floresta no estado, que ostenta 98%, segundo argumenta o governo do Amazonas.
A ZFM seria uma espécie de Curupira pós-moderno, politizado, “de gravata e sapato”, para citar, aqui, um dos versos da canção “Olhando Belém”, interpretada pelo cantor paraense Nilson Chaves. Para os amazônidas, este ser encantado é o que defende a floresta contra os que tentam destruí-la.
Sobre isto, a análise do sociólogo Antônio Carlos Witkoski é singular. Ele diz: “os intelectuais e defensores desta tese ‘esquecem’ que as relações socioeconômicas e político-culturais entre mundo urbano e mundo rural, na vida contemporânea, mais do que em qualquer outro momento da história humana, são intrinsecamente condicionadas”.
Ainda, “se fosse realmente verdadeiro o suposto círculo virtuoso promovido pelo Curupira pós-moderno, Manaus, o lugar de sua morada, não poderia ser o protótipo da estética terceiro-mundista, com indicadores socioeconômicos elevados de pobreza, concentração de renda e exclusão social”, acrescenta o sociólogo.
Alternativas são necessárias
Eu concordo com Witkoski, a ZFM não cumpriu com o seu propósito inicial na capital nem no interior que, desde a sua implantação, se tornou cada vez mais Estado-dependente. Apesar de ser fundamental para as finanças do estado do Amazonas, é preciso encontrar alternativas à ZFM, ao menos para complementá-la de forma relevante, caso não seja possível sua total substituição.
Neste ponto, surge uma pergunta importante: é possível criarmos alternativas à ZFM? Sim, é possível. Na atualidade, há várias possibilidades e a própria história econômica do Amazonas mostra que é possível. À guisa de exemplo, muito antes das indústrias eletroeletrônicas aportarem em “terras Baré”, com o advento da ZFM, a indústria de aniagem já havia se estabelecido no Amazonas.
No meu livro, intitulado “Fios dourados: singularidades e possibilidades do cultivo de juta entre o Brasil e a Índia”, há um registro detalhado deste processo. O que o espaço me permite registrar aqui é que antes da ZFM um forte polo têxtil se estabeleceu na capital amazonense. Isso, fundamentalmente, a partir da inauguração da Companhia Brasileira de Fiação e Tecelagem de Juta S.A. (BRASILJUTA).
Inaugurada em Manaus no dia 20 de janeiro de 1954, em um evento que contou com a participação do presidente Getúlio Vargas, esta fábrica foi pioneira da indústria da juta no estado do Amazonas. Chegou a processar 15 mil toneladas por ano em sua fase áurea.
Indústria da juta em Manaus
Nas décadas seguintes outras fábricas e prensas também se instalaram em Manaus, a saber: Fiação e Tecelagem de Juta Amazônia S.A. (FITEJUTA); Empresa Industrial de Juta S.A. (JUTAL); I. B. Sabbá & Cia. Ltda. (prensa); Philippe Daou S.A. (prensa); Indústria e Comércio Abdul Razac S.A.; Fábrica de Tecidos Matinha; e a Empresa Industrial de Fibras e Óleos Ltda.
No Amazonas, a produção de fibras, primeiramente de juta e posteriormente de malva, foi por um longo período a atividade responsável pelo expressivo percentual na formação da renda do estado. Conforme dados do Instituto de Fibras da Amazônia (IFIBRAM), o valor de sua cultura representava 20% da renda do setor primário. A atividade empregava 51% da população amazonense trabalhando neste setor na década de 1960.
Neste ponto, alguém pode objetar e dizer que as informações que trago aqui são saudosismos, lembranças de um passado impossível de se retonar. Ao que eu respondo: não se trata de saudosismo, mas, sim, de indicar historicamente que caminhos novos são possíveis de serem trilhados. Com a juta e a malva o Amazonas encontrou uma solução produtiva após o marasmo econômico oriundo da débâcle da borracha bem antes da ZFM.
Novos arranjos
Neste sentido, penso que este mesmo povo, esta mesma intelligenza, pode criar novos arranjos produtivos no estado. Pode-se fazer utilizando para isso modelos de desenvolvimento endógeno que explorem de maneira sustentável todas as nossas potencialidades e riquezas naturais.
A ZFM não é, no meu entendimento, o Curupira protetor das florestas amazonenses. Se não bastasse viver ameaçado de extinção o tempo todo pelos “velhos de Brasília” e suas poderosas canetas BICs, velhos estes que, ao contrário do que escreveu Nilson Chaves, são eternos, o Curupira pós-moderno tem criado apenas ilhas de riqueza em Manaus e no interior.
Entretanto, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios amazonenses é muito ruim. Alguns municípios apresentam IDH equivalente ao de países da África Central. É preciso mudar isto!
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Sociólogo
Arte: Gilmal