Uma antropomorfização rebaixada de Deus

No interior das comunidades evangélicas que adotam a teologia arminiana, a antropomorfização chegou ao ponto de Deus já não ser senão um serviçal dos seres humanos,

antropomorfização rebaixada de Deus

Neuton Correa, Aldenor Ferreira* Antenor Ferreira**

Publicado em: 08/03/2025 às 00:01 | Atualizado em: 08/03/2025 às 04:50

Antropomorfização é o termo utilizado no campo da filosofia da religião para designar a prática de atribuir, a seres sobrenaturais, as características típicas dos seres humanos. Nesse contexto, a divindade passa a ser definida, ou descrita, como possuidora de semelhanças comportamentais e até visuais humanas. 

O Cristianismo é o maior exemplo de antropomorfização, considerando que o Deus dos cristãos (Yahweh), embora seja, em essência, um espírito puro – logo, desprovido de corpo e não formado de matéria –, é também um Deus pessoal. Ou seja: dotado das características próprias de uma pessoa. Para completar esse quadro, esse mesmo Deus se fez carne, assumindo para si um corpo inteiramente humano, o Emanuel (Deus dentro do barro), na pessoa de Jesus de Nazaré.

Embora a antropomorfização não seja um problema em si, ela pode se tornar um grande problema, com graves consequências. Veja-se o caso da teologia evangélica contemporânea, mais notadamente a teologia praticada no Brasil, cujas raízes se ligam, em sua maioria, ao ramo arminiano da teologia cristã. O que ocorre nesse campo teológico não passa de uma antropomorfização rebaixada de Deus.

No interior das comunidades evangélicas que adotam a teologia arminiana, a antropomorfização chegou ao ponto de Deus já não ser senão um serviçal dos seres humanos, e o Deus Filho, Jesus Cristo, a se apresentar como o ser mais carente de afeto de que se tem notícia.

Nada pode ser mais tolo do que isso!

Yahweh

Na verdade, trata-se de uma enorme contradição com a revelação que Yahweh faz de si mesmo nas Escrituras Bíblicas: um ser onipotente, onisciente e onipresente, que criou todas as coisas por meio de sua palavra e que as governa soberanamente. 

Mesmo sendo um ser pessoal, dotado de afeição, não pode haver carência afetiva em Deus, uma vez que Ele é autossuficiente. Além disso, as Escrituras Bíblicas declaram que há perfeito contentamento em Deus, já que Ele subsiste em três pessoas.

Atualmente, o Deus de quase todas as igrejas evangélicas brasileiras é um ser tão carente que fica implorando para que alguém o aceite, para que alguém o ame. É comum ver pastores e demais pregadores reproduzindo a seguinte frase: “filho, estou aqui, me dá teu coração”. O autor dessa frase seria Jesus, que, nela, implora por aceitação humana, praticamente se humilhando. E, mesmo quando rejeitado, Ele continua insistindo.

É nessa suposta insistência que surgem outras frases como: “Deus não vai desistir de você”; “Jesus te ama e tem um plano para a sua vida”; “Você é precioso, mais raro que o ouro de Ofir”; “Você tem valor”; “Deus está de braços abertos a te esperar”; “Jesus quer cuidar de você”, entre outras igualmente apelativas.

Remonstrantes

Os discípulos de Jacobus Armínius, chamados de Remonstrantes, em sua tentativa de resistir à doutrina da predestinação calvinista, ergueram, no século XVII, na Holanda, uma série de argumentos que visavam trazer o ser humano um pouco mais para o centro das decisões a respeito da fé e da salvação. Isso representou o ressurgimento da ideia de “livre-arbítrio”, doutrina já superada em séculos passados.

Pelo livre-arbítrio, o ser humano estaria apto a aceitar e a resistir a graça de Deus oferecida na salvação por meio do sacrifício de Cristo. É a crença no livre-arbítrio que justifica toda essa gama de frases apelativas comumente encontradas nas comunidades evangélicas, já que a decisão final dependeria do ser humano.

Nós, como bons calvinistas, afirmamos que tudo isso é falso. Embora a responsabilidade humana seja uma realidade atestada nas Escrituras Bíblicas, a verdade declarada nelas sobre a salvação é que Deus salva soberanamente pela graça. Deus é soberano sobre tudo e sobre todos, inclusive sobre os acontecimentos mais aleatórios do universo.

Se Deus é tal como as escrituras revelam, Ele é Deus, ou seja, Ele é totalmente outro. Deus não está submetido a nenhuma lei natural, seja da física, da química, da biologia ou da matemática. Muito menos está submetido a alguma condição ou convenção humana.

Deus, em si mesmo, é o Senhor da criação, santo e perfeito. Ele não é um velhinho solitário e carente que precisa desesperadamente de amor de qualquer outro ser. Ele basta-se a si mesmo. A dependência de Deus em relação a qualquer criatura é nenhuma, zero. E mais: como soberano Ele dispõe de suas criaturas como bem entender. O caso de Jó é um exemplo claro disso.

Conclusão

Concluímos afirmando, novamente, que Deus não está submetido a nada nem a ninguém. Ele não está preso a nenhuma volição. Ele é soberano e, dentro dessa soberania, age como lhe apraz. Nada há no ser humano que possa lhe agradar, salvo o homem Jesus de Nazaré. O profeta Isaías proclama, no capítulo 64, verso 6, que “todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças como trapo de imundície”.

Portanto, caro(a) leitor(a), não é Jesus de Nazaré que precisa de você, mas é você que precisa desesperadamente dele. Não é você quem escolhe Deus, não você quem decide aceitar Jesus a partir de uma pregação que você ouve. Pelo contrário, é Ele quem escolhe você para ouvir e para crer na pregação. E, se ele não o escolher, você ficará em seus pecados. É simples assim.

Para que não reste dúvida, deixamos aqui a declaração de Jesus registrada no evangelho de Lucas: “Ninguém sabe quem é o Filho, senão o Pai; e também ninguém sabe quem é o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Lucas 10.22).

*Sociólogo

**Teólogo

Arte: Gilmal