Um doce contra a intolerância: a festa de Doum, Cosme e Damião!

Nos últimos anos, também têm sido feitas campanhas contra a intolerância e a demonização das religiões afro-brasileiras. E dar uma sacolinha com doces a crianças também se converteu em um ato político

Ferreira Gabriel, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 28/09/2024 às 14:19 | Atualizado em: 28/09/2024 às 14:38

Dia 27 de setembro é festejado o dia de São Cosme e São Damião nas religiões de matriz africana.

Dia 26 de setembro, o catolicismo comemora os gêmeos santos, São Cosme e São Damião, sem Doum.

Doum seria o nome em iorubá para aquele que nasce em seguida ao nascimento de filhos gêmeos.

Antes do Concílio Vaticano II, vigente a partir de 1965, os santos eram comemorados dia 27 de setembro. Com o novo tratado, a igreja católica passou a dedicar a eles o dia 26.

Mas, por terem se popularizado no Brasil conduzidos pelas religiões afro-brasileiras, eles continuam sendo festejados popularmente em 27 de setembro.

A distinção nos remete ao que se convencionou chamar como sincretismo religioso. No entanto, fala de uma violência simbólica e, muitas vezes, física exercida sobre o que foi reconstituído das cosmologias de origem africana nas senzalas brasileiras.

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Mártires da Igreja

São Cosme e São Damião são santos antigos, fundacionais da fé católica. Eles teriam vivido entre os séculos III e IV no Oriente.

Desde jovens, eram reconhecidos pela habilidade de curar. Convertidos ao cristianismo, passaram a ser também missionários.

No ano 300, Diocleciano, imperador romano, mandou prendê-los por serem considerados inimigos dos deuses. Diante das acusações, eles repetiam:

“Nós curamos as doenças em nome de Jesus Cristo e pelo Seu poder”.

Ao morrer por professar a fé cristã, eles são considerados mártires da igreja católica. E são protetores dos médicos e farmacêuticos.

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Santos populares

No Brasil, por influência das religiões de matrizes africanas, São Cosme e São Damião receberam uma iconografia que os remete à infância. E à sua imagem foi acrescentada a figura de Doum, uma criança.

Isso porque, nas religiões afrobrasileiras, cultuam-se os Ibeji, filhos gêmeos de Xangô e Iansã, e os Erê. Ibeji também significa infância.

A tradução literal de erê em iorubá seria recompensa. No Brasil, o significado usual é brincar ou criança.

Porém, o significado usual não se distancia da tradução literal, pois os erês são entidades que só realizam um pedido em troca de algo, principalmente, doces e brinquedos.

Na umbanda, há uma linha da espiritualidade dedicada às crianças. Em outras religiões afro-brasileiras, os erês são entidades que conectam os Orixás aos seus filhos na terra e tem papel fundamental no processo de iniciação.

Catolicismo à brasileira

A devoção a São Cosme e São Damião chegou ao Brasil junto com a coroa portuguesa no Rio de Janeiro, no início de 1800.

Na capital carioca, criou-se a tradição de distribuir saquinhos com doces às crianças. O que poderia ser feito tanto por pessoa ligadas aos terreiros quanto por devotos de fé católica. A tradição se espalhou pelo Brasil na segunda metade do século XX.

Segundo Dia de Cosme e Damião, o filme (2020), curta documentário disponível no YouTube, a tradição teria quase desaparecido dos bairros da zona sul do Rio de Janeiro, mantendo-se mais forte nas periferias. O cenário teria se modificado na passagem de 1990 para 2000.

Perseguidos mais uma vez

Na mesma época, uma campanha de ódio e intolerância às religiões de matriz africana foi deflagrada em todo o Brasil. E a tradição de dar doces às crianças no dia de São Cosme e São Damião foi atacada.
Igrejas evangélicas, como a Igreja Universal do Reino de Deus, publicaram, e ainda publicam, artigos em revistas e jornais de sua propriedade que defendem a condenação da prática.

Tais campanhas coibiram a distribuição de doces às crianças por pessoas que as faziam em suas casas, comércios ou lugares públicos como praças e parques infantis.

Devotos dos gêmeos, passaram a distribuir itens diferentes de doces em espaços considerados neutros, como roupas e brinquedos em hospitais infantis e orfanatos.

Desse modo, pode-se dizer que São Cosme e São Damião, agora na companhia de Doum, foram perseguidos mais uma vez.

Um doce contra a intolerância

Contudo, nos últimos anos, também têm sido feitas campanhas contra a intolerância e a demonização das religiões afro-brasileiras. E dar uma sacolinha com doces a crianças também se converteu em um ato político.

Neste ano, padre Júlio Lancelot, sacerdote famoso por combater ferozmente às desigualdades sociais na capital de São Paulo, distribuiu doces no final da missa que celebrou no dia de ontem. Não sem críticas e defesas igualmente ferozes, inclusive de católicos.

Em Manaus, os estabelecimentos de vendas de produtos religiosos da matriz africana como Casa Maria Padilha e Cabana Mariana, e o bar O Sarará, no centro da cidade, distribuíram sacolinhas com doces às crianças.

Próximo à casa de umbanda de Seu Idemar, no bairro Cachoeirinha, por volta das 17h, foi possível ver grupos de crianças, acompanhadas de seus pais, carregando braços cheios de doces e brinquedos. Ele realiza a festa cerca de 40 anos.

A ação dá início à tradicional festa de Cosme e Damião. Como parte da liturgia, havia o prato dedicado às crianças na umbanda: o caruru, farofa e vatapá, receitas brasileiras nascidas nos terreiros.
Havia ainda um enorme bolo em verde e rosa, as cores dos santos que, também pode incluir azul.

Todos que chegavam à casa puderam disfrutar do jantar especial. Mas, os que ficaram até o final, puderam comer a oferenda, repleta de doces, e levar generosas fatias do bolo verde e rosa para casa.

O significado da festa de São Cosme e São Damião é a celebração da vida das crianças e o reforço do compromisso dos mais velhos de cuidá-las e protegê-las.

*A autora é antropóloga.

Fotos: divulgação