Luta e resistência, negros e índios dominam 2ª noite do festival
Caprichoso e Garantido levaram para o bumbódromo temas com enfoque social e histórico sobre os povos da Amazônia

Arnoldo Santos, especial para o BNC Amazonas
Publicado em: 26/06/2022 às 12:29 | Atualizado em: 26/06/2022 às 12:31
Garantido e Caprichoso confirmaram, na noite deste sábado (25), a proposta de resgatar o tempo perdido e reconhecer a origem negra como um dos pilares da formação sociocultural da Amazônia.
Foi uma segunda noite de festival folclórico onde os dois bois reforçaram o objetivo de sair da simples representação artística para a representatividade efetiva dos povos originários da floresta e de suas bandeiras prioritárias.
Índio, caboclo e o negro formam os traços do homem e da mulher dos que estão à frente das duas agremiações com a nítida influência da academia, com equipes formadas por professores universitários, jornalistas, antropólogos, historiadores, cientistas sociais, entre outras profissões. E com o apoio das respectivas diretorias.
Dessa forma, Caprichoso e Garantido entraram na arena para dar os seus recados. Nesta segunda noite, foi o boi do bairro da francesa que abriu a programação.
Caprichoso e o ‘brado do povo’
A sinopse da ‘noite B’ do Caprichoso definiu o enredo da noite como a noite de representação das “lutas constantes dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia”.
Figura típica regional
A figura típica regional trouxe o caboclo da mata. Em uma alegoria suntuosa, a vida em simbiose do homem com a floresta foi exaltada. Essa relação gerou conhecimento popular inestimável e indivíduos sabedores de muito. Gente como o senhor “Antônio Conceição, um caboclo da mata, morador da Comunidade Sabina, no Rio Mamurú. Um caboclo da mata como os que o boi Caprichoso homenageia hoje”, segundo a revista oficial do tema.
Exaltação folclórica
O boi de quilombo, com seus traços negros, encheu a arena com o discurso do resgate. Pois a herança dos negros “foi por muito tempo renegada ou escamoteada, sob a alegação de que pequenos contingentes de escravizados não teriam deixado traços marcantes por aqui”.
A pesquisa realizada pelo conselho de arte do Caprichoso mostra que estudos acadêmicos comprovam que dezenas de milhares de negros, vindos de países como Guiné-Bissau “trouxeram costumes, crenças, sabores, línguas e tradições que foram incorporados à vida amazônica de distintas formas”.
Lenda Amazônica
A história da estrada construção da ferrovia Madeira-Mamoré (1907-1912), obra faraônica que rendeu mais de dez mil mortes (estimativa) de operários, vítimas de doenças da floresta, com a malária, deixou no imaginário popular a crença de aquela era a estrada da morte.
O desastre humano que se abateu ali foi retratado pela lenda amazônica “os trilhos da morte”. A alegoria mostrava, no centro, a frente da locomotiva infernal.”Conta a lenda que, em noites de luar, nos trechos que ainda restam dos 360 km de ferrovia, ouvem-se brados, gemidos e sussurros. É a agonia das almas dos operários, gritos de pavor ressoando da multidão de fantasmas que marcham atormentados por entre os trilhos da Mad Maria”, nome do livro do amazonense Márcio Souza, que também virou uma série de tv.

Ritual indígena
O Caprichoso levou para a arena a representação do ritual Wayana e Apalai, dois povos de língua karib que habitam a região de fronteira entre o Brasil, o Suriname e a Guiana Francesa.
Contaram a história da luta das duas tribos contra Tuluperê, uma fera mítica, de duas cabeças, que estava matando seus integrantes. O poderoso pajé Apalai lidera-os contra a criatura, vencendo a batalha fantástica do imaginário.

Destaques
A coreografia mostrada pelas tribos indígenas foi levada pela toada “Vale do Javari”, composição de 1994, de Ronaldo Barbosa e João Melo, que cita os povos daquela região.
Logo em seguida, um momento de protesto, quando Ângela Mendes, filha do seringueiro Chico Mendes, e Dario Kopenawa, filho do líder yanomami David Kopenawa, levaram para a arena uma faixa com as imagens pintadas do jornalista britânico Don Phillips e do indigenista Bruno Ferreira, assassinados por pessoas ligadas a práticas de crimes ambientais, que eles combatiam na região do Vale do Javari. “Nós jamais devemos nos calar”, disse o apresentador Edmundo Oran.

Outro momento emocionante foi quando Patrick Araújo (levantador), acompanhado pelo pianista João Gustavo Kienen, cantou a toada ‘Feito de Pano e Espuma’ uma declaração de amor touro negro da francesa (bairro reduto azulado).

Com 2 horas e 29minutos, o Caprichoso fechou a 2ª noite do festival com os itens (destaques) individuais dançando no chão. A marujada de guerra saiu tocando na formação enfileirada.
O apresentador Edmundo Oran fechou sua performance dizendo: “fizemos dois espetáculos em menos de 24 horas”.
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Segunda Noite Vermelha
O Boi Garantido levou para a segunda noite de arena o enredo “Lutas, resistências e evolução”. Começando pelo pensamento de quebrar a visão histórica que ditou a verdade pela visão de quem colonizou e não por quem foi colonizado. Contando a história de lutas dos povos que foram retirados à força de suas regiões de nascimento, como os africanos, escravizados e trazidos para a América nos porões de navios, acorrentados no corpo, mas nunca na mente.
Perdão
O amo do boi, João Paulo Faria, simbolizou resumiu todo o discurso do Garantido, na tentativa de revisar o passado e fazer justiça com os negros.
Aproveitou a presença da Mãe Catirina e Pai Francisco, serviçais da fazenda, cenário do auto do boi, e versou: “Pai Francisco e Mãe Catirina, criados no meu torrão. Na história, tão desprezados, mas hoje…O nosso boi Garantido e toda sua nação revê (sic) o próprio passado e assim pedimos perdão”, finalizou ‘Jotapê’, em posição de reverência ao casal, citados como negros e sempre valorizados como coadjuvantes na história que deu origem ao boi-bumbá.

Figura Típica Regional
A Amazônia revolucionária foi simbolizada revolta dos Cabanos, ocorridas entre 1835 e 1840, a única revolta popular que realmente chegou ao poder efetivo, na história do Brasil. “Cabanagem, revolta que deu visibilidade a um tipo humano amazônico renitente e persistente, os cabanos. Cansados da exploração a que eram submetidos, negros, brancos empobrecidos, tapuios e indígenas uniram-se em busca de melhoria das condições de vida”.
A alegoria levou para a arena figuras gigantes do preto velho, de São Jorge (símbolo do sincretismo religioso afrolusitano), da mulher negra e dos descendentes das castas reais africanas que perderam suas vidas ao virarem objetos de compra e venda na mão do branco escravizador.

Celebração folclórica
Na celebração folclórica, o levantador de toadas, Edilson Santana, representando a negritude musical vermelha, fez dueto com Márcia Siqueira. Nesse momento, sob o som da toada “Festa do Povo Negro”, uma faixa com os dizeres “Vidas Negras Importam” apareceu na arena voando, sustentada por um drone.

Lenda Amazônica
O Garantido mostrou a lenda dos espíritos da memória dos tupi-guarani, Xandoré e Ticê. O primeiro, Deus da Deus do ódio, rancor e inveja. Capaz de se transformar em falcão e, por isso, sabia de tudo o que se passava pela floresta.
Por sua vez, Ticê “era uma poderosa mulher capaz de enganar até mesmo o tinhoso Anhangá. Tornou-se conhecida na mitologia tupi-guarani por ser domadora de maus sentimentos, tendo
domínio sobre eles e impedindo que se lançassem terríveis castigos sobre outras mulheres, incluindo grávidas. Ela também era a senhora dos segredos, pela quantidade de informação
sobrenatural que conseguia reter no coração”.
A alegoria trouxe a figura da cunhã poranga, Isabelle Nogueira. Ela veio suspensa, trazida por uma enorme onça pintada.

Ritual Indígena
O ritual veio em forma de alerta. Contou a história da mãe karajá, que sentia saudade do filho, menino de 11 anos, que tinha entrado na Casa das Máscaras, onde mulheres não podiam entrar.
“Sufocada pelas saudades, a mãe, depois de um longo tempo, decide visitar o amado,
mesmo sabendo que severas punições viriam caso o segredo das máscaras fosse a
ela revelado”. O menino, que já sabia o segredo da casa, revelou tudo para a mãe.
Irritados pela revelação, os espíritos donos dos segredos, invadem a tribo. “Enquanto o guardião espiritual (pajé) luta contra as entidades que chegam para vingar-se, as máscaras sagradas envolvem-no e o levam embora dali, fazendo-o sumir no espaço”. É o fim do mundo karajá.
O Garantido usou a representação para alertar que o esquecimento e a desobediência aos conhecimentos ancestrais e “com a grande Mãe Terra, que pode extinguir a tudo e a todos caso a Ela não nos voltemos com respeito!”

Final empolgante
O Garantido finalizou a apresentação da segunda noite comemorando o que consideraram uma performance bem sucedida. “Saímos no tempo correto. Demos a nossa mensagem. Tenho certeza: a nossa Nação (encarnada) está bem”, disse ao BNC Amazonas, Antônio Andrade, presidente do Boi Garantido.
Fotos da capa: Michael Dantas/ SEC-AM