Caprichoso e Garantido mostram o que são na última noite
Ficou evidente a diferença de espetáculo entre eles. Leia nas análises de Dassuem Nogueira e Juliana Oliveira, enviadas do BNC a Parintins

Dassuem Nogueira e Juliana Oliveira, da Redação do BNC Amazonas em Parintins
Publicado em: 30/06/2025 às 11:31 | Atualizado em: 30/06/2025 às 11:31
Na terceira noite de competição entre Garantido e Caprichoso ficou evidente a diferença de espetáculo entre eles. O boi-bumbá Caprichoso domina a ciência do folclore, com paleta de cores de fantasias e alegorias que acendem o azul, uma cor fria, difícil de se destacar à noite. Nessa última noite, viu-se ainda a tecnologia, com hologramas em alegorias jamais vistos em Parintins.
O boi-bumbá Garantido domina o verbo folclorear. Com os pés no chão, o boi evoca a força espiritual de sua comunidade, a baixa da Xanda. Márcia Siqueira soltou sua belíssima voz ao som da toada “Artesãs indígenas”, trazendo para o centro da arena a participação feminina no espetáculo.
Tem-se a impressão de que, quanto mais grandioso e perfeito vem o boi Caprichoso, mais a galera do Garantido se sente desafiada a afrontá-lo no grito.

Tema da noite
O Caprichoso trouxe o tema “Retomada pela vida!” e não deixou de surpreender a cada minuto a arena do bumbódromo.

O amo do boi Caetano Medeiros versou um alerta sobre as mudanças climáticas para abrir a lenda da noite que trazia Marciele Munduruku como mãe da floresta.
Nessa alegoria, o boi conseguiu transformar a crítica social em alegoria, fugindo ao padrão consagrado das alegorias nas quais predominam a estética amazônica.
À frente da imensa alegoria vinham dois tratores de colheita de soja. Na cênica vieram exploradores da floresta, madeireiros, grileiros, e garimpeiros.
O Garantido trouxe o tema “Bois do Brasil”, e emocionou do início ao fim. Contudo, o tema foi muito parecido com a noite anterior (“Garantido, o patrimônio do povo”), e o uso de praticamente as mesmas toadas fez a última noite ser parecida com a anterior.
O diferencial do repertório de imagens acionadas foram as homenagens ao compositor Chico da Silva, que comemora 80 anos em 2025. Um dos pontos altos foi a troca de tripa. Denildo Piçana, após 30 anos defendendo o item na arena, passou a missão de dar vida ao boi a seu filho, Denildo Piçanã Filho. Ambos foram ovacionados pela galera vermelha e branca.
O outro ponto interessante foi a participação do antropólogo João Paulo Tukano no ritual Bahsese. Contudo, a presença de João Paulo poderia ser melhor incorporada ao espetáculo, por exemplo, inserindo-o na mística do ritual, e não apenas apresentando-o para o público vê-lo.
Enquanto o boi Caprichoso encadeia suas noites, no formato ópera amazônica em três atos que se completam, o Garantido, por sua vez, faz um espetáculo no estilo teatro de revista, com pedaços soltos em uma mesma noite.
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A técnica
O Caprichoso mostrou sua técnica e fez das fantasias da noite um espetáculo à parte.
Marciele Munduruku, a cunhã-poranga, desceu da alegoria com asas de borboleta, que se abriram e bateram formando um perfeito desenho de transfiguração.
Aliás, a cunhã-poranga do Caprichoso, geralmente séria em sua performance facial, nos presenteou com belos sorrisos.
O pajé, Erick Beltrão, trouxe uma fantasia que produzia uma presença dupla: de um lado, o pajé um pouco menos mizurento do que o habitual, e do outro, uma máscara com expressão facial realista, capaz de imprimir movimentos finos nos olhos e nos lábios.
A indumentária do pajé do Caprichoso se movia tal qual uma alegoria.
Por outro lado, faltou a sofisticação nos acessórios cênicos das performances de Isabelle Nogueira (cunhã-poranga) e Lívia Cristina (rainha do folclore) do boi Garantido.
A máscara que permitia Isabelle se transmutar em arara e Lívia em Yara deixavam o truque à vista. E, além disso, a própria confecção da calda de Yara era rústica.
Um módulo da alegoria do ritual Bahsese apresentado pelo Garantido bateu na estrutura da arena e desabou enquanto era retirada pela lateral. Nesse momento, o pajé Adriano Paketá brilhava na arena.
A sinhazinha da fazenda do Garantido se apresentou mais divertida do que sua oponente e isso pode ser um diferencial.
O amo do boi vermelho
João Paulo Faria, amo do boi Garantido, teve sua melhor performance desde o início do festival. Trouxe para a arena uma foto do amo do boi contrário abraçado ao Garantido, revelando a relação familiar dos Medeiros com o boizinho branco.
Faria denunciou ainda que há dez anos o boi Caprichoso tem eleições de chapa única. E, para colorir sua performance, usou uma boia de melancia, fazendo alusão à uma brincadeira interna aos bois: cortando a melancia, por dentro se é vermelho, se é Garantido.
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Grafismos como segunda pele
O levantador de toadas do Caprichoso, Patrick Araújo, foi o foco do item toada, letra e música ao som de “Brasil, terra indígena”. Ao lado estavam aquelas que pareciam ser as Suraras do Tapajós, que não foram devidamente apresentadas naquela ocasião.
O levantador de toadas usou uma roupa de segunda pele com grafismos indígenas, semelhante àquela usada pelos coreógrafos que formam o chamado “tribão”, e esteve suspenso em uma alegoria no meio das mulheres indígenas.
Com a participação cada vez mais expressiva dos povos originários no festival (no planejamento e na arena), provavelmente será necessário repensar o uso desse tipo de indumentária que, de certa forma, nos lembra o black face outrora usado pelos bois-bumbás em Pai Francisco e Mãe Catirina. Os grafismos são caminhos para o sagrado, trazem proteção espiritual, não são meros enfeites. Podem ser incorporados de fato e feitos pelos próprios indígenas.
A tecnologia
Por fim, o Caprichoso apresentou nos três dias um argumento coerente, seccionado em três atos.
Sua tecnologia alegórica foi espetacular e moderna. O Caprichoso jogou com técnica e sua vontade de conquistar o inédito tetra.

O Garantido, por sua vez, deixou a desejar em alegoria e técnica. O que o fez brilhar foi a espiritualidade da baixa, a tradição e a emoção, sendo esta também uma tecnologia, denominada pelo boi-bumbá, de perrecheologia.

Resta saber se isso será suficiente para sustentar uma disputa equilibrada.
Fotos: Juliana Oliveira/especial para o BNC Amazonas