A corrida de Caprichoso e Garantido pelo manto tupinambá

Os bois, interessados em trazer o manto para a arena, foram atrás dos tupinambás.

Dassuem Nogueira e Juliana Oliveira, da Redação do BNC Amazonas em Parintins

Publicado em: 28/06/2025 às 13:03 | Atualizado em: 28/06/2025 às 17:33

No primeiro dia do festival de Parintins, o 27 de junho, os bois-bumbás Garantido e Caprichoso levaram para a arena o manto tupinambá.

Com estilo imponente, o Caprichoso trouxe o manto, azul e verde, vestido em uma liderança tupinambá em um contexto de reivindicação por demarcação de terras indígenas.

Foto: reprodução/YouTube

O Garantido, também acompanhado por lideranças tupinambás, apresentou uma alegoria viva como o manto vermelho, que remete ao do século 16, que foi repatriado em 2024 e hoje está no Museu Nacional, do Rio de Janeiro.

No entanto, o manto parecia se encaixar mais no tema do Caprichoso (“É tempo de retomada”) do que no do Garantido (“Boi do povo, boi do povão”).

O curioso para o público é entender a fixação dos bois no manto. Afinal, a reivindicação por demarcação territorial é ampla dentro e fora da Amazônia brasileira, e esse tema poderia ser explorado de maneiras criativas na arena.

Então, os jurados e as juradas podem se perguntar: quem teve essa ideia primeiro?

Ao que parece, Caprichoso e Garantido efetuaram uma corrida em direção ao manto para saber quem o traria para a arena primeiro, e os tupinambás tiveram que se dividir para ocupar o espaço criado junto aos bois.

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O retorno do manto

O debate em torno do manto tupinambá reacendeu no Brasil em 2024.

Tradicionalmente, o manto é feito com penas vermelhas da ave guará ou azuis de araruna, e fibras vegetais. Mede 1,8 metro de altura e era usado em rituais. Um dos mantos, fabricado no século 16, foi levado para a Europa durante o período colonial.

Existem 11 mantos tupinambás no mundo, produzidos entre os séculos 16 e 21, conservados em museus na Europa.

Foi a anciã Amotara Tupinambá, durante a exposição “Brasil + 500: Mostra do redescobrimento”, em São Paulo, que olhou o manto tupinambá do século 16, então cedido provisoriamente pela Dinamarca ao Brasil, e o reconheceu.

Em julho de 2000, os tupinambás buscaram a Procuradoria da República de Ilhéus, na Bahia, e pediram o manto de volta, baseados no artigo 216 da Constituição.

Devido à falta de condições de museus brasileiros em recepcionar essa relíquia sagrada e a ausência de acordos internacionais entre Brasil e Dinamarca, o processo foi arquivado em 2009.

A reivindicação dos tupinambás readquiriu forças em 2021.

O embaixador do Brasil na Dinamarca entrou em contato com o museu e o governo dinamarquês e solicitou formalmente a devolução do manto do século 16.

Era necessário que ficasse claro que os tupinambás concordavam com o envio do manto para o Museu Nacional devido às condições de salvaguarda e conservação da relíquia.

A cacica Jamopoty e o cacique Babau, da Serra do Padeiro, assinaram cartas de apoio a essa ideia.

Após mais de 300 anos de permanência no Museu Nacional da Dinamarca, um deles retornou ao Brasil e permanece hoje no museu do Rio.

Cerca de quatro mantos foram fabricados por Glicéria Tupinambá (irmã do cacique Babau), da aldeia Serra do Padeiro (BA), entre 2006 e 2021, com as cores marrom, preto, branco e algumas penas de aves.

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Manto no bumbódromo

Em entrevistas à imprensa, diretores de Caprichoso e Garantido apresentaram as lideranças de Olivença, da Bahia.

O Garantido publicou em 31 de maio de 2025 em suas redes sociais que tinham findado as negociações para que representassem o manto na arena do bumbódromo.

A associação vermelha informou que desde janeiro estavam em processo de consulta aos tupinambás e que a sua cunhã-poranga, Isabelle Nogueira, havia tido papel fundamental na mediação com o povo.

O Garantido informou ainda que acordou com os tupinambás que não poderia fazer um manto para levar à arena por se tratar a peça de um “espírito ancestral”. Teriam que representa-lo e desfazê-lo logo em seguida.

Por isso, a associação folclórica criou a alegoria humana que representava o manto, e que se desfez logo em seguida.

O boi Caprichoso trouxe o manto do século 21, também chamado de manto do novo milênio. Porém, por ser sagrado, o manto confeccionado por Amoatara Tupinambá só pôde entrar na arena sobre o corpo de um tupinambá, que desfilou com ele, apresentando-lhes aos jurados e juradas.

Além disso, o boi azul fez uma representação do manto todo azul como uma alegoria, suspenso pelo guindaste. Dele surgiu o pajé, representando o espírito do manto sagrado.

O que dizem os tupinambás

Em nota publicada no dia 27 de junho, o Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (CitoTupinambá), esclareceu sua participação no Festival Folclórico de Parintins.

A organização representa os tupinambás de Olivença.

“Quando fomos contatados e informados sobre o desejo dos bois Garantido e Caprichoso de retratar a história do manto sagrado tupinambá, deliberamos em conselho sobre a necessidade de uma escuta presencial em Olivença, nossa aldeia-mãe. A representação só poderia ocorrer após essa escuta e consulta”, diz a nota.

Os bois, interessados em trazer o manto para a arena, foram atrás dos tupinambás. O Garantido parece ter se adiantado ao seu oponente ao procurá-los logo em janeiro.
A proposta do boi Caprichoso ganhou peso em função de seu tema, o que foi decisivo para que os tupinambás cedessem ao Caprichoso o manto do século 21 para ser apresentado na arena.

“Considerando o tema ‘É tempo de retomada’, a cacique Jamopoty autorizou que esse manto fosse utilizado pelo Caprichoso, uma vez que foi confeccionado pela própria cacique e por outros guerreiros indígenas – e não produzido pelo boi”, diz a nota do CitoTupinambá.

Os tupinambás disseram ter pedido que nenhum dos bois fabricasse um novo manto.

O Garantido pôde fazer a representação do manto em alegoria, com a condição de ser “desfeito no mesmo dia ou ao fim do festival”.

Foto: Juliana oliveira/especial para o BNC Amazonas

O Caprichoso pôde usar o manto do século 21 fabricado pelos tupinambás e, ao final do festival, ele retornará para a aldeia.

Para os indígenas, trazer o manto ou a sua representação para a arena é trazer para o foco a questão da demarcação de seu território.

“Compartilhamos com as representações dos bois Garantido e Caprichoso a nossa luta pela demarcação do território tupinambá de Olivença, que há 16 anos aguarda a assinatura da portaria declaratória pelo Ministro da Justiça”, diz a nota do CitoTupinambá.

Diante da rivalidade bovina, e do desejo dos bois em levar o manto (ou representações dele) para a arena, os tupinambás de Olivença decidiram se juntar aos rivais, dividindo-se.

Com o Garantido, entraram na arena a cacique Jamopoty, Adnoelson, Ana Liz e Taquari Pataxó.

Foto: reprodução/YouTube

Com o Caprichoso, Yakuy, Naiá, Bruno e Thiago Tupinambá.

Foto: reprodução/YouTube

A comitiva tupinambá chegou a Parintins no dia 25 de junho e retorna no último dia do festival.

Caprichoso e Garantido foram convidados pela comitiva tupinambá a participar da 2ª Vigília do Manto Sagrado Tupinambá, que ocorrerá no Museu Nacional, no Rio de Janeiro.

Fotos: Juliana Oliveira/ especial para o BNC Amazonas