Toadas de todos os tempos

Diferente das cantigas de amor, nas toadas não há exaltação a uma mulher, mas aos bois

#Toadas inaugura hoje espaço cultural Semulsp

Mariane Veiga, por Dassuem Nogueira

Publicado em: 27/09/2023 às 17:07 | Atualizado em: 27/09/2023 às 17:17

A toada vem se transformando ao longo de pouco mais de um século. Assim como o próprio boi-bumbá.

Maria Celeste de Souza Cardoso fez um estudo sobre o Cancioneiro das toadas do boi-bumbá de Parintins. Nele, a pesquisadora estabelece paralelos entre os estilos de cantiga medievais de amor, de escárnio e de amigo com as toadas antológicas de Parintins.

Ela afirma que não há como determinar os antepassados das toadas até sua chegada na ilha Tupinambarana. Contudo, há vestígios do cancioneiro medieval ibérico, trazido pelos colonizadores portugueses.

As características em comum são a oralidade, pois eram passadas oralmente de pai para filho; versos curtos; poucas ou uma única estrofe.

Porém, diferente das cantigas de amor, nas toadas não há exaltação a uma mulher, mas aos bois.

Os versos de desafio do início do boi-bumbá se assemelham em tema às cantigas de escárnio, pois o objetivo é diminuir o desafiante.

As toadas de amigo narram o universo bucólico do campo, por isso, se assemelham às toadas que falam das paisagens amazônicas, da fazenda e do vaqueiro.

Na década de 1990, as toadas têm uma nova estrutura: introdução ou cabeça, corpo ou desenvolvimento e conclusão ou final.

Quanto à estrutura formal, geralmente organiza-se em quatro estrofes, com um ritmo crescente, começa de forma lenta e explode no refrão.

Maria Celeste as chama de toadas populares, pois se alinham à música popular. Contudo, os temas persistem, como a adoração pelo boi, o culto à natureza, a exuberância dos rituais, a força do caboclo etc.

O novo sempre vem

A divisão feita por Maria Celeste entre toadas antológicas e populares tem como base a tensão entre o antigo e o novo que caracterizou a década de 1990 no mundo bovino.

Para Wilson Nogueira, pesquisador de festas populares na Amazônia, a toada foi o item que mais se modificou ao longo dos anos. As transformações ocorreram à medida em que a brincadeira foi ganhando atenção do mercado de cultura de massas na década de 1990.

Para o pesquisador, “a pressão nas bases tradicionais não estancou os testes com ritmos que distanciavam cada vez mais os bumbás de suas raízes. Criou-se, então, um novo ritmo que se aproxima das exigências que vêm do mercado com o sentimento do passado”.

Mas não foi o boi-bumbá que se transformou, foi o mundo que mudou. Para Maria Celeste, as transformações foram inevitáveis, dado que o festival folclórico de Parintins passou a ser também um produto.

Apesar de ter se fastado de muitos elementos tradicionais, a toada passou a se esforçar em representar culturas indígenas e caboclas. Mais recentemente, vem se alinhando a pautas políticas nacionais e mundiais.

A década de 1990

As transformações pelas quais as toadas de boi bumbá passaram tem como marco a década de 1990. Coincide com o sucesso mundial alcançado por Tic Tic Tac, de Braulino Lima. A toada foi feita para o Boi Garantido no ano de 1992, mas que fez sucesso no Brasil e na Europa na versão da banda Carrapicho em 1996.

Nesse ano, também fez sucesso a toada Vermelho, de Chico da Silva, no dueto feito por Fafá de Belém e Davi Assayag, na época, levantador do boi do coração na testa.

Em dezembro daquele ano, foram gravados dois álbuns épicos de Arlindo Júnior e Davi Assayag, então levantadores de Caprichoso e Garantido respectivamente.

Os álbuns “ao vivo no anfiteatro da Ponta Negra” foram gravados pela Sony Music. E contaram com a produção de Marcos Mazzola até hoje, um profissional aclamado pela crítica.

Marcos Mazzola produziu nomes como Gal Costa, Chico Buarque, Milton Nascimento, Ney Matogrosso e Elis Regina.

Antes do advento da internet no mundo, a contratação por uma gravadora significava que haveria ampla divulgação do trabalho. Isso porque o caminho para alcançar o grande público estava na participação em programas de televisão e rádios.

Os álbuns dos levantadores de toadas oficiais dos bois foram uma aposta alta no ritmo que acabava de conquistar o país.

A opção pela gravação ao vivo pretendia capturar a alta energia que ocorre em um show de toadas. A sinergia entre levantadores, os tambores e público são ímpares. Um show de toadas aciona memória de catarse para aqueles que assistem aos espetáculos ao vivo no bumbódromo de Parintins.

A reboque do sucesso de Tic Tic Tac, além dos levantadores oficiais, participaram de vários programas globais e eventos nacionais os levantadores Klinger Araújo e Tony Medeiros, e o grupo Canto da Mata.

O sucesso nacional obtido pelas toadas na década de 1990 não obteve similar até o momento. Porém, o cenário agora é outro.

Se antes, as gravadoras concentravam e orquestravam os sucessos populares, hoje esse é um fenômeno pulverizado pela internet.

Desse modo, consumidores dos diferentes mundos musicais brasileiros, como o de toadas, tem acesso aos seus ritmos preferidos em qualquer parte do planeta.

Hoje mesmo, o #Toadas, da plataforma Brasil Norte Comunicação (BNC), sucesso na internet, chega hoje em Brasília, com ingressos esgotados para a apresentação de dois shows.

Além de tocar as toadas, o programa contextualiza o mundo toadeiro para quem ainda não é íntimo. Maria Celeste destaca que “a toada é como a Amazônia, se você não a conhece, não é capaz de entendê-la”.

O processo de composição das toadas

A antropóloga Socorro Batalha, analisou o processo de composição das toadas de boi-bumbá, arranjos e parcerias. Ela apreendeu que as toadas são resultado da aposta em uma experiência artística para o espectador.

Atualmente, as toadas são feitas para o espetáculo, chamado de “boi de arena”. Assim, ao fazer uma toada, os compositores já a imaginam com os arranjos e uma proposta visual de execução alegórica e coreográfica no festival.

Eles ainda consideram a interpretação que deverá ser realizada pelo levantador de toadas. Assim, uma toada é feita para harmonizar com as características vocais de um cantor específico.

Tudo a fim de provocar, inicialmente, a expectativa do que ocorrerá na arena. Essa, se concretizará ou não em sua execução no festival. E, claro, contabilizar pontos na competição.

Isso porque as toadas são feitas para os diferentes itens que se apresentam: individuais, coletivos e artísticos.

Adriano Aguiar, compositor do boi Caprichoso, fez a toada Sensibilidade para o levantador Davi Assayag. A toada é de 2011, segundo ano da participação de Davi no boi azul.

Naquele ano, o boi Garantido apostou em Sebastião para fazer apresentações mais arrojadas com danças e aparições. Davi não poderia competir nesses termos.

Adriano então apostou na emoção para conquistar público e jurados. Além de fazer uma linda homenagem a Davi Assayag.

O ritual das toadas

O momento ritual deriva da participação do pajé no auto do boi, quando ele surge para ressuscitar o animal abatido por Pai Franscisco.

No festival folclórico de Parintins, o aparecimento do pajé no ritual passou a ser a representação da personagem indígena.

O momento é marcado pela luta entre o bem e o mal no contexto mitológico de alguma etnia, segundo a visão dos compositores. E que se associa a execução de uma alegoria que tem o papel de representar o que está na toada.

Segundo Batalha, a ênfase no momento ritual feito desse modo surge na década de 1990, junto a uma série de mudanças no formato das apresentações.

A escolha dos povos indígenas a serem representados nas toadas tem como principal critério a variedade de elementos que possam ser atrativos para o público.

Assim, as cores, danças, vestimentas, plumárias e pinturas corporais de um povo são consideradas para servir a um plano visual durante as apresentações.

Socorro Batalha diz que “primeiramente o compositor faz a pesquisa da etnia, depois elabora a letra da toada, e em seguida fundamenta o arranjo. A pesquisa torna-se fundamental. Sem ela não há letra e sem letra não há cenários”.

Comumente, as parcerias entre os compositores de ritual surgem quando um realiza a pesquisa sobre um determinado povo indígena. Desse material resulta a elaboração da letra e, posteriormente, a criação do arranjo.

A pesquisa tornou-se fundamental para a submissão das toadas nos processos seletivos, sendo obrigatória a apresentação das referências bibliográficas ou comprovações de que o compositor fez pesquisa de campo.

No Garantido, o processo de criação das toadas parte dos compositores. A partir delas, se faz a elaboração do boi de arena.

No Caprichoso, se dá ao contrário: o Conselho de Artes apresenta aos compositores uma proposta de boi de arena baseada em pesquisa. Em seguida, eles apresentam as toadas e é feita a seleção.

As toadas são escolhidas em um processo seletivo, lançado em edital pelas agremiações, comumente, em novembro do ano anterior.

Comissão de Artes, no Garantido, e Conselho de Artes, no Caprichoso, juntam compositores, arranjadores e convidados para as audições.

A autora é antropóloga.

Foto: BNC AMAZONAS