Toma, papai, que o título é seu!

Após 43 anos, papai e mamãe recebem do prefeito Bi Garcia e da deputada Mayra Dias Título Definitivo no Assentamento Vila Amazônia

Mayra Dias, Bi Garcia, Aguinaldo e Valda

Neuton Correa

Publicado em: 21/12/2022 às 12:35 | Atualizado em: 02/02/2023 às 19:39

Neuton Corrêa

Lá estão meu pai e minha mãe, ao lado do prefeito Bi Garcia e da deputada Mayra Dias. Tento imaginar agora a felicidade dos dois, sobretudo do papai, com esse olhar reflexivo.

Sim, reflexivo. O papai e a mamãe estão ali para receber o Título Definitivo do amado sítio Santo Antônio.

Falando assim, talvez, possa ser algum comum. Mas o olhar do seu Aguinaldo está projetando um filme do qual eu, a dona Valda e meus sete irmãos fomos personagens.

Naquele olhinho, o papai está revendo os 43 anos de sua paixão pela cabeceira do Miriti.

Chegou ali no barco do tio Valdemar. O rio estava cheio. Falaram pra ele que um tal de Fernando queria vender um terreno. Quando a água desceu, lá foi o papai atrás do Santo Antônio.

Não era, bem, ali, perto do lago, da comunidade. Não! Era bem lonjão. Na cheia, uns quatro quilômetros de distância, da canoa até lá. 

Porém a distância triplicava quando a água ia embora, porque a gente tinha que andar da beira do rio Amazonas até o meio da floresta.

Mas nada disso o parou. O papai, sempre apoiado pela mamãe, se tacou pra lá, com a gente. Eu, terceiro filho da família, tinha nove anos.

Ele chegou no Miriti, no auge de sua força, de todas as suas capacidades. Tinha apenas 38 anos dos seus hoje 81.

Foi uma história que parecia que terminaria no começo, na maior tragédia da nossa vida no Miriti.

Minha irmã, Néia, a segunda, morreu ali, quase à nossa frente, afogada. Era fim de junho de 1980. Parintins estava em festa, mas o papai foi na cidade só comprar comida e voltar no mesmo dia.

Imagine. Não havia telefonia rural, internet muito menos. Então, era só combinar de buscá-lo na beira do Amazonas num horário estimado. E assim fizemos.

Quando voltamos ao lago, a Néia ainda estava lá. Ela também deve ter visto a gente. Mas, ao chegarmos no porto da comunidade, minha irmã já estava no fundo.

Por longo anos vivemos traumatizados. A mamãe, coitada, aliviou as dores de sua alma com essa perda há poucos anos, depois que resolveu ir a uma psicóloga do serviço público, em Manaus.

Mas, não. Isso não parou o papai.

Aí foi que ele se entregou. Logo, quis construir uma casa lá no meio do mato. Foi ao banco, pegou um dinheiro emprestado, comprou a madeira e fez a casa. Não contratou ninguém para construí-la. 

Papai era carpinteiro, sempre contava suas aventuras na construção do telhado da Fabril Juta. Ele contava que andava nas paredes e vigas como trapezista, desafiando as alturas.

Com o fim da grande obra, montou uma oficina e, aos poucos, foi aperfeiçoando o ofício de marceneiro.

Mas pense numa aventura que foi carregar essa madeira, naquela distância de que já falei. Você deve estar se perguntando: por que não tiraram a madeira lá na mata. Resposta: naquela época, nem motosserra tinha no Miriti. Só machado.

Além disso, o papai nunca pensou a desmatar mais do que precisava. Tanto que, após anos, depois de abrir seus quatro hectares de área, nunca mais cortou uma árvore. 

Também não tínhamos barco. Fizemos muitas viagens de canoa. Íamos para o sítio de canoa, de madrugada, pra não pegar sol. Mas sempre voltávamos para cidade, no início da tarde.

Todos tínhamos remos, os maiores. O meu era um feito de uma madeira leve, mas de palheta grande. Mas o do papai era um grande, palheta grande, pesado, de Itaúba preta. Nunca entendi, mas ele explicava que impulsionava mais. Eu não tinha força com ele, não consegui nem experimentá-lo.

Papai e mamãe, principalmente, experimentaram todos os desafios de que é viver e tentar produzir na Amazônia.

Lembro que assim que chegamos no Santo Antônio plantamos abacate. Ora, tínhamos esperança de colher um bom fruto. Afinal, a semente era do abacateiro do seu Paulino Macedo, nosso vizinho da cidade. O abacateiro dele dava abacate com cerca de um quilo de polpa.

Esperávamos que ele iria produzir com cerca de cinco anos. Que nada! Esperamos o dobro do tempo, para ver as primeiras flores.

Enquanto isso, nos atiramos ao plantio do guaraná. O preço estava bom, o tio Zé (Corrêa) informava. Plantamos, cresceu e produziu conforme o esperado, mas o preço caiu e o plantio teve que ficar no mato.

As duas experiências ensinavam que solo, técnica, clima e mercado são cruciais na agricultura, mas ninguém, nenhum órgão público de assistência técnica e extensão rural chegava ali para ensinar.

O papai só veio descobrir que a terra do Santo Antônio era somente suporte para técnicas de cultivos depois começou a plantar laranja e a criar peixe.

Mas a plantação de laranja só aconteceu em 2004, mais de 25 anos, 1/4 de século, já havia se passado. Mas foi uma boa lição: nunca mais ele plantou sem colocar, sequer, um calcário na cova.

Ah, o peixe. Sim, papai criou peixe, matrinxã, no igarapezinho de casa. Foi uma alegria. Dois mil alevinos, que, seis meses depois, se transformaram num aquário lindo.

Dois problemas, porém: 1) papai e mamãe se afeiçoaram à criação. Então, o peixe, que seria só para alimentação, virou amigo deles, imaginavam. O raciocínio era o seguinte: as matrinxãs conheciam eles. 

Provavam isso assim: quando algum desconhecido ia para o igarapé, as matrinxãs se escondiam; quando eles iam pra lá, elas nadava ao encontro deles, alegres.

O problema 2 dessa criação foi um predador, que pescava de rede e de zagaia. Foi o fim.

Mas faltava algo para completar essa aventura do papai, da mamãe e nós, filhos, pelo Miriti.

Para o papai, muito mais, porque isso que faltava lhe constrangeu tantas e tantas vezes, principalmente quando ele tinha ideia de fazer um investimento ali.

Sempre esbarrava numa exigência que lhe deixava sem a força que teve para se instalar no sítio, no meio da mata.

Esse era o tão sonhado e prometido Título Definitivo de Terra. 

Pois, no fim de semana que passou, papai ficou sabendo que o Incra, em parceria com a Prefeitura de Parintins, iria entregar o documento para 120 famílias e que nome dele estava lá, também.

Eu fiquei sabendo da notícia na noite de sexta-feira. A Socorro Marques, servidora do Incra, me deu a dica, dizendo que o Jornada, João Jornada, atual superintendente do órgão, gostaria de me dar a notícia e ter a honra de entregar o documento ao papai.

Naquele instante, meus olhos formaram um temporal de alegria, imaginando o quão feliz o papai ficaria.

A notícia não poderia chegar num momento melhor do que esse, na mesma semana em que os médicos iniciaram investigação para saber a razão pela qual as mãos do papai estão ficando tão trêmulas.

Papai até esqueceu disso. Passou a segunda-feira treinando a assinatura. E conseguiu, porque hoje o Título do Santo Antonio saiu e tem sua assinatura. 

Então, pai, não pude estar aí para ver essa sua alegria, mas, daqui, quero lhe dizer: Toma, papai, que o título é seu.

No fim destas linhas, minha gratidão aos amigos Bi Garcia, prefeito de Parintins, e ao atual, superintendente do Incra, Jornada, pelo esforço que fizeram para levar essa alegria ao meu pai e a mais 119 histórias de ocupação do Assentamento Vila Amazônia.

Que vocês possam seguir dando essa alegria a mais assentados.