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Simone de Beauvoir

Não há morte natural: do luto à luta

José Alcimar de Oliveira*

 

  1. Para Simone de Beauvoir (1908-1986) não existe morte natural. Assim também penso. Mesmo a mais serena das mortes, como teria sido a de Epicuro –  que, supostamente, despediu-se da vida numa banheira acompanhado de legítimo vinho da Hélade -, nunca será natural, porque pertence à ontologia do ser social. No âmbito do ser social nenhuma causalidade, por mais natural que se lhe apresente, ou se queira definir, nunca poderá ser reduzida ao reino da necessidade ou dos determinismos da natureza. Não existe morte fora do mundo cultural engendrado pelo ser social.

 

  1. A assim denominada bala perdida, pode sim ter um alvo não intencional, mas nunca uma origem socialmente não objetivável. Não foram balas perdidas as que mortalmente atingiram Marielle e Anderson. Não foram propriamente balas de latrocínio. Foram balas de um Estado em que os poderes se organizaram e operam em função de si mesmos, apartados da classe que habita o andar de baixo, dos que sobrevivem em permanente e degradada condição de desigualdade social. Balas de um Estado em que as instituições parecem se decompor a cada dia.

 

  1. As mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes, nesse 14 de março de 2018, evocam coincidências na arena histórico-emancipatória: a primeira, de tantas coincidências, faz uma ligação – essa não fruto do acaso – mas necessária e inevitável, entre Marielle e Marx: uma e outro, mesmo desiguais na origem de classe e na cronologia, partilham de uma posição de classe comum, porque foram intelectuais coletivos dos subalternizados. Marx não hesitaria em afirmar que as balas que subtraíram a vida de Marielle e Anderson tinham igualmente origem e posição de classe.

 

  1. Há ainda outras coincidências que excedem a linha cronológica, porque vinculam essas mortes à história da resistência e da luta dos que, em diferentes campos de enfrentamento, aliaram vida e conhecimento a serviço de causas coletivas. Assim, enumeramos: o bicentenário de nascimento de Karl Marx (1818-1883); o mesmo 14 de março em que há 135 anos morreu Marx, o Mouro de Trier; o mesmo dia, mês e ano da morte de Stephen Hawking (14 de março de 2018); o mesmo dia e mês em que nasceu Einstein (14 de março de 1879); o mesmo mês e nos 50 anos da morte do estudante Edson Luís (março de 1968); os 50 anos: da contrarreforma do ensino superior brasileiro; do movimento de resistência dos estudantes no Brasil, na Europa e nos EUA; dos arbítrios e da resistência ao AI-5; o centenário de nascimento de Antonio Candido e o centenário da histórica conquista do movimento das mulheres sufragistas.

 

  1. Em célebre texto intitulado O que significa elaborar o passado, Adorno assinala a necessidade hermenêutica de ir ao passado, ou ao que se julgava passado, como reforço ao esclarecimento sobre o presente. Florestan Fernandes referia-se ao Brasil como país da contrarrevolução permanente. Desse modo, trazer à memória fatos coletivos, indivíduos sociais e datas que demarcam um devir histórico dos que teimaram e teimam em converter o presente no único e legítimo espaço de construção do futuro, significa impedir que se ampliem as zonas de sombras e de sono da razão, forças propícias à geração de monstros, como bem o lembrava Goya.

 

  1. Em razão disso, não podem, essas mortes, de Marielle e Anderson, as mortes anônimas de cada dia, perversamente naturalizadas, sucumbir à tirania do tempo curto do presente sem história, tão ao gosto da sociedade da excitação. Brecht, nas frentes de luta de seu teatro épico e pedagógico, assinalou que quando é abatido quem não lutou sozinho, o inimigo não pode proclamar vitória. À luta, à vida feita de luta e à morte executada, estúpida e covarde de que foram vítimas Marielle e Anderson, não seguirá o luto, mas a luta.

 

  1. Nada contra a reflexão heideggeriana de que o homem é um ser para a morte, ou contra uma possível metafísica da vida, porque à vida do ser social não é estranho a projeção utópica, mas sem a dignidade básica da física da vida toda idealização além disso não passará de estelionato existencial. Somente a luta muda a vida. Somente a grande luta muda a história.

 

*José Alcimar de Oliveira, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, base da ADUA-S.Sind e filho dos rios Solimões e Jaguaribe.

 Em Manaus, AM, 19 de março de 2018.