Ressurreição ou invencibilidade da substância humana: por uma teologia rés ao chão
Por José Alcimar de Oliveira*
- No plano da razão revelada, a cruz indica que a horizontalidade da morte não tem a última palavra sobre a vida, porque a contingência do existir humano é verticalmente interceptada pelo necessário da verticalidade da Ressurreição. No plano da razão histórica do ser social, a fé na ressurreição cede lugar ao que Agnes Heller chama de “invencibilidade da substância humana”, para a qual nenhuma conquista da humanidade pode desaparecer definitivamente. No fim, o que conta mesmo é cuidar e defender a vida, sobretudo dos que já não têm vida antes da morte.
- Numa carta escrita há 150 anos, precisamente no dia 17 de março de 1868, Marx (o Mouro de Trier) assim reconheceu sua atitude diante do mundo: “(…) sempre me movo em contradições dialéticas”. Mesmo sem nenhum registro escrito de natureza autoral, encontramos no Evangelho algo dessa dialética heraclítica e marxiana nas palavras de Jesus de Nazaré: “Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? ” (Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso! – Lc 12,49).
- Dos assim conhecidos quatro elementos ontogênicos do ser natural e social (água, ar, terra e fogo), é o fogo aquele que reúne maior força simbólica e transformadora. Sem que tivesse o ser social dominado pelo trabalho o uso do fogo, não teria chegado, para o bem e para o mal, ao atual estágio da nanotecnologia. Por outro lado, também deve ser dito que aquilo que se define por natureza em nada tirou proveito desse domínio ígneo. O que deve a natureza à cultura? Tanto quanto o povo brasileiro em relação aos benefícios da nanociência. Porque submetida que é à nanopolítica, à classe que vive do trabalho só cabe a inclusão rebaixada e degradada na ordem e progresso para poucos.
- O mais antigo e renomado filósofo dialético do Ocidente, Heráclito de Éfeso (ca.530-470 a.C.) conferia ao fogo o poder de gerar o devir cósmico e o associava ao Logos que, segundo se pode deduzir de seus sábios fragmentos, era uma inteligência superior, divina, a governar todas as coisas. Para a tradição veterotestamentária o fogo simboliza ao mesmo tempo a palavra de Deus e o julgamento divino, concorrendo para formar e purificar o povo. Jesus de Nazaré, conhecedor que era da Lei e dos Profetas, tinha conhecimento dessa simbologia ontodialética associada ao fogo. Suas palavras, portanto, ao referir-se ao fogo não eram as de um incendiário voluntarista, porque estava consciente de que o processo de formação do povo, de mudança de mentalidade, implicava o trabalho paciente e pedagógico do conceito. Como se algo de hegeliano tivesse o Nazareno.
- Jesus combinava em sua práxis a fala direta às multidões com a formação permanente dos 12 como forma de garantir a continuidade do projeto utópico que orientava sua missão. Nunca fez acordo com os dominantes de seu tempo. Se para a esquerda classista e herdeira do materialismo histórico e dialético a colaboração (ou o eufemismo conciliação) de classe é uma forma de traição para a qual não há absolvição, não era diferente – a não ser na terminologia – para o projeto de Jesus de Nazaré. Afinal, qual o único pecado que ele reputava indigno de perdão senão o de quem blasfemasse contra o Espírito Santo, conforme o registro de Mc 3,29: “Aquele, porém, que blasfemar contra o Espírito Santo, jamais será perdoado: é culpado de pecado eterno”. O Espirito Santo é o fogo heraclítico dos cristãos, é o Logos que fundamenta o Projeto do Reino, o daimon que impelia e impedia Sócrates de renunciar ou trair a missão que os deuses lhe confiaram. Não é em forma de línguas de fogo que desce o Espírito Santo sobre os cristãos?
- Aplicada ao homem Jesus de Nazaré, essa consciência histórica unia origem e posição de classe a partir dos socialmente deserdados. Penso que o registro de Lucas 4,18-19 é o mais explícito testemunho de consciência de classe de Jesus, quando num sábado, ao entrar na sinagoga de Nazaré – ele que pouco se detinha nos rituais do templo, porque preferia o mundo do povo ao templo das autoridades –, toma nas mãos o Livro do Profeta Isaías e faz uma leitura pública do que ali estava escrito: “O Espirito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor”.
- Páscoa de vida a todos e firmeza na luta comum contra as forças tanáticas dos agentes do sociometabolismo do capital. De Heráclito a Marielle Franco, passando por Sócrates, Epicuro, Cristo, Agostinho, Heloísa, Espinosa, Kant, Hegel, Marx, Antônio Conselheiro, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Martin Luther King Jr, Adorno e Paulo Freire, e a lista é lacunar, a história nos mostra que os inimigos da vida não podem cantar vitória, porque abatidas/os na luta ou silenciadas/os, nenhuma dessas grandes figuras, para concluir com Brecht, lutou ou resistiu solitariamente.