A solução vem do Sul Global
O Sul Global desponta como protagonista na busca por soluções sustentáveis, com destaque para sistemas agroflorestais como alternativa à agricultura predatória.

Social Midia, por Alexandre Camargo Martensen*
Publicado em: 20/06/2025 às 12:07 | Atualizado em: 20/06/2025 às 16:21
Atualmente, a humanidade enfrenta dois dos maiores desafios de sua história: alimentar uma crescente população de maneira sustentável e enfrentar as consequências das mudanças climáticas. O não equacionamento desses desafios já se desdobra em crises que não apenas colocam em risco o bem-estar humano, como também estão profundamente interligadas e se retroalimentam.
Para suprir a sempre crescente demanda por alimentos, fibras e biocombustíveis, temos historicamente simplificado paisagens naturais, convertendo ecossistemas megadiversos em campos agrícolas homogêneos. Via de regra, essa transformação tem incrementado a produção de um serviço ecossistêmico, a produção agropecuária, e comprometido muitos outros, como a regulação do fluxo hídrico, a fixação de carbono, a manutenção da biodiversidade e a polinização.
O protagonismo do Sul Global
Ao homogeneizar as paisagens, alteramos ciclos biogeoquímicos fundamentais, como o do carbono e da água, ampliamos a crise climática e o colapso da biodiversidade. É nesse contexto que o Sul Global surge não como um ator coadjuvante, mas como um protagonista na busca por soluções.
Ao contrário das propostas de desenvolvimento historicamente oriundas no Norte Global, que frequentemente promovem modelos homogêneos e simplificados, os países do Sul carregam características únicas e estratégicas.
Localizados predominantemente entre os trópicos, esses países abrigam ecossistemas de altíssima biodiversidade. As florestas tropicais, por exemplo, ocupam cerca de 11% da superfície terrestre, mas concentram mais de 50% das espécies terrestres conhecidas.
Os ambientes aquáticos tropicais, especialmente os marinhos, também apresentam níveis excepcionais de diversidade e produtividade primária. E não é apenas a diversidade biológica que chama atenção, uma vez que os trópicos também são o berço de uma impressionante diversidade cultural.
As regiões mais ricas em espécies também são as mais ricas em línguas e culturas humanas. No entanto, essa enorme riqueza está sob ameaça, com taxas de extinção de espécies cerca de mil vezes superiores às naturais e previsões de que até 90% das línguas atualmente faladas possam desaparecer antes do final deste século.
Essa diversidade de espécies, modos de vida, línguas, saberes e formas de organização social tornam o Sul Global inerentemente distinto. No entanto, a trajetória de desenvolvimento dessas regiões tem sido marcada pela sistemática importação de técnicas, tecnologias e modelos produtivos do Norte Global.
Monoculturas e a homogeneização de paisagens
Muitas dessas soluções foram concebidas em contextos ecológicos, sociais e históricos completamente diferentes, e, ao serem aplicadas de maneira acrítica, têm contribuído para a intensificação dos desequilíbrios ambientais, sociais e econômicos.
O resultado é o agravamento das crises globais e o aprofundamento das desigualdades entre Norte e Sul. Um exemplo claro dessa lógica é o modelo agrícola amplamente adotado nos trópicos, importado de regiões temperadas do hemisfério norte.
Este modelo aposta em grandes monoculturas e na homogeneização de paisagens, favorecendo a mecanização e o uso intensivo de insumos químicos. Só que, ao fazer isso, ele acaba desperdiçando uma das maiores riquezas das regiões tropicais: a luz do sol, que brilha com força o ano todo.
Ao deixar campos agrícolas e paisagens homogêneos e simplificados, com poucas camadas de vegetação, esse tipo de agricultura apresenta reduzida capacidade de aproveitamento da energia solar o que, consequentemente, diminui a possibilidade de transformar tal energia em alimentos e em outros produtos agrícolas. Ou seja, apesar de parecer moderno, esse modelo, quando empregado em regiões tropicais, rende muito menos do que poderia.
Além disso, esse processo de simplificação cria as condições ideais para o surgimento de pragas e doenças, que só conseguem ser controladas com o uso massivo de agrotóxicos. Isso gera um círculo vicioso de dependência, em que os produtores se endividam para comprar insumos de multinacionais, geralmente sediadas no Norte Global, e tornam-se reféns de um sistema que degrada o solo, compromete os recursos hídricos e empobrece a biodiversidade.
Sistemas agroflorestais
A produtividade da agricultura tropical é, em grande parte, fruto das condições naturais, como calor, chuvas e alta incidência solar ao longo de todo o ano. Um recente estudo dos Institutos Fólio e Escolhas mostra, inclusive, a redução das taxas de produtividade por quantidade de insumo utilizado (defensivos e fertilizantes). Para realmente capturar essa energia solar de forma eficiente, deveríamos olhar e aprender com a própria natureza.
Sistemas agroflorestais, que combinam diversas espécies em múltiplos estratos vegetativos, representam uma alternativa promissora. Eles mimetizam a estrutura das florestas nativas, promovendo sinergias ecológicas e oferecendo uma ampla gama de produtos, como alimentos, fibras, madeiras, entre outros serviços ambientais, como a fixação do carbono e a regulação dos recursos hídricos.
As agroflorestas podem aliar produtividade, conservação da biodiversidade e resiliência climática, algo essencial para os desafios que enfrentamos. No entanto, transformar as agroflorestas em uma solução viável em larga escala exige investimentos robustos em pesquisa e desenvolvimento.
Portanto, é necessário criar modelos produtivos ajustados às diferentes regiões e contextos socioculturais. Também é fundamental desromantizar esse modo de produção – agroflorestas não são uma panaceia, nem funcionam por mágica.
Nesse sentido, precisamos de tecnologias que facilitem o manejo, reduzam a demanda por mão de obra intensiva e tornem esses sistemas mais acessíveis aos pequenos e médios produtores. É urgente o desenvolvimento de políticas públicas que incentivem e viabilizem sua adoção, promovendo uma verdadeira transição agroecológica no campo.
Considerações finais
Em síntese, o Sul Global não é apenas um território de dificuldades, onde os problemas com distribuição de renda e pobreza ainda imperam, mas é também uma região de possibilidades e terreno fértil para a criação e a gestão de soluções para os graves problemas globais.
Ao buscar soluções enraizadas na diversidade de seus territórios e saberes, o Sul pode liderar uma nova forma de pensar e fazer o desenvolvimento. Um desenvolvimento que não seja apenas sustentável no discurso, mas efetivamente regenerativo, justo, diverso e plural.
As agroflorestas são apenas um exemplo poderoso do que podemos alcançar quando trocamos a lógica da imposição pela da cooperação com a natureza. Precisamos reinventar o presente para garantirmos um futuro. E, talvez, reinventar o presente seja justamente escutar melhor o que os trópicos têm a dizer.
*O autor é biólogo, professor da Universidade Federal de São Carlos, campus Lagoa do Sino.