Sonhadores e equilibristas: nossa permanência e resistência 

O que dizer aos que clamaram aos “coturnos e fuzis”? Temos algumas respostas. Uma delas é que nós não iremos para a Venezuela. Continuaremos aqui

Vice-reitora da UFSCar - Prof. Dra. Maria de Jesus Dutra dos Reis, Vice-Reitora da UFSCar.

Neuton Correa, por Maria de Jesus Dutra dos Reis*

Publicado em: 25/03/2025 às 10:58 | Atualizado em: 25/03/2025 às 11:40

Neste momento em que tomo posse e assumo o cargo de vice-reitora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) por mais quatro anos, deparei-me com a angustiante tarefa de preparar algo para esta ocasião: expressar palavras que estejam em conformidade com a solenidade ordinária, mas que também carreguem afeto e, especialmente, façam sentido para aqueles e aquelas que vieram compartilhar este momento.  

Ao tentar encontrar esta minha voz coletiva, em momentos de introspecção, perguntei-me: por que ainda estou aqui? Esse questionamento também me foi ecoado por amigos e amigas, especialmente aqueles que, há mais de 10 anos, acompanham minha jornada ininterruptamente no exercício de funções de gestão na instituição. São pessoas conscientes dos custos e das cicatrizes deixadas pelas condições adversas do tempo em que vivemos.

Ao me aprofundar nesta reflexão, fui recorrentemente visitada pelos fantasmas do passado e percebi que, para construir essa resposta, preciso levar todos e todas a uma pequena viagem no tempo.  

Graduação na Universidade de Brasília

Nos meus primeiros dias como estudante de graduação na Universidade de Brasília (UnB), fui tomada pelo encantamento, pela surpresa e, muitas vezes, pela intimidação diante da intensidade e da dinâmica da vida acadêmica. 

Continuamente, fui introduzida por meus professores ao mundo do ceticismo, da pesquisa sólida, do compromisso com a qualidade e da exigência da crítica em cada texto lido, em cada atividade desenvolvida. Mas, naqueles dias, também fui apresentada à dureza daquele momento histórico. 

No primeiro semestre, lembro-me de estar desenvolvendo uma atividade de laboratório enquanto, no andar superior do Minhocão, acontecia uma manifestação. O professor responsável pelo laboratório entrou na sala e me orientou: 

“nunca deixe a porta do laboratório aberta, especialmente em dias como o de hoje. Há poucos anos, durante uma manifestação, militares invadiram o campus, desceram aqui, abriram esta porta e, sem qualquer aviso, atiraram no aluno que estava sentado exatamente onde você está agora. Ele não morreu, mas o tiro na cabeça fez com que perdesse parte da massa cefálica, deixando-o paralisado”. 

A UnB ainda estava sob a gestão do último reitor interventor, o Tenente-Coronel Álvaro de Azevedo. Naqueles anos de luta pela redemocratização, aprendi, com aqueles que me formavam, que a ciência deve estar comprometida com a sociedade a que serve, não apenas com os interesses do mercado. 

DCE e CAs

Em aula, discutimos os textos publicados naquela semana em jornais internacionais e também buscamos formas de levar esse conhecimento a todos. Ao mesmo tempo em que nos apresentavam as mais novas tecnologias e descobertas científicas, os professores e professoras ensinavam-nos a reconhecer agentes infiltrados. Todos entendiam os perigos que ainda rondavam os corredores da instituição.

Os alunos e os técnicos-administrativos não tinham assento nos conselhos superiores, mas eram instados por docentes membros desses colegiados a discutir, no Diretório Central do Estudantes (DCE) e nos Centros Acadêmicos (CAs), as pautas que nos eram repassadas, com o compromisso de que eles falariam por nós. 

Muitas vezes nos esperavam na porta do auditório para receber pedacinhos de papéis onde apresentávamos nossas demandas e reivindicações. Mas, à medida que os ventos mudaram e a Constituinte foi instaurada, o entusiasmo e a esperança tomaram conta de todos nós. Na diversidade de ideias e desejos, havia uma certeza comum: Ditadura nunca mais!

Ingresso na UFSCar 

Em 1989, entrei na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) com o sentimento de responsabilidade para honrar aqueles que me antecederam, de carregar a tocha que me foi passada. No meu dia a dia, procurei não esquecer o compromisso com a produção de pesquisa com qualidade e com responsabilidade social; com a defesa do ensino público e gratuito, para que novas gerações, assim como eu, tivessem acesso a esse processo transformador.  

O tempo passou e, com a participação de muitos, a democracia amadureceu. As universidades cresceram, expandiram-se, tornaram-se mais diversas, inclusivas, e se fizeram presentes em regiões antes esquecidas do país.

Não se enganem: as universidades sempre foram alvo de ataques de setores da imprensa, de setores da sociedade e do empresariado. Editoriais e matérias de grandes jornais recorrentemente defendiam (e ainda defendem) que o ensino superior deveria ser privado, que as universidades federais seriam ineficientes. 

No entanto, nos últimos anos, de maneira sorrateira, um Brasil emergiu como de um universo paralelo. De repente, esse ódio recrudesceu: a Terra ficou plana, a ciência foi violentamente rejeitada e as universidades, bem como a democracia, viram-se inseridas em um ambiente tão hostil, tóxico e abusivo que, em seu extremo, levou ao suicídio um reitor querido e o desespero a tantos outros.  

Não estamos sozinhos

A apologia à ditadura e aos torturadores foi sancionada, os medos e as angústias daqueles dias sombrios voltaram

A apologia à ditadura e aos torturadores foi sancionada, os medos e as angústias daqueles dias sombrios voltaram. Nesse contexto de repúdio à ciência, enfrentamos uma trágica pandemia de covid-19, cujas consequências foram agravadas pelas políticas de saúde negacionistas do governo, resultando na perda de inúmeras vidas brasileiras.

Com efeito, o mais surpreendente foi o apoio e a aprovação que esse mesmo governo manteve. Uma massa saiu às ruas para negar a consulta democrática e, de forma assustadora e impensável para quem viveu aqueles dias de terror, exigiu um golpe militar, clamando pelo retorno da ditadura. Houve um ataque direto às instituições, em uma tentativa de instaurar um novo regime ditatorial. 

Na primeira colação de grau presencial após a pandemia, Ana Beatriz e eu fomos verbalmente agredidas durante nossas falas nos cerimoniais. Aqui na universidade, nesta sala, um pai gritou, instando para que eu fosse para a Venezuela. E tendo testemunhado tudo isso, vendo o retorno daquilo que deveria ser repudiado e esquecido, por que concorrer a este espaço de gestão? Por que lutar por um sonho que tantos rejeitam? 

A resposta é direta e simples: não estou sozinha. Não estamos sozinhos. Neste momento de negacionismo e desesperança, vozes de sonhadores e equilibristas foram compelidas pelo compromisso que trazem tatuados no corpo: a defesa do ensino público e da democracia. 

E antes que mais retrocessos se avolumassem e causassem perdas irreparáveis, esta comunidade se movimentou. E a resistência e a luta pela democracia exigiram que ocupássemos diferentes posições em diversas frentes de batalha. 

Considerações finais  

A defesa da democracia pede mãos que se entrelacem e almas que se comovam, que decidam caminhar sobre os destroços, protegendo o que precisa ser protegido e preservado e salvando o que não pode ser perdido. Novas gerações levantaram novamente as tochas. Gestores especiais, jovens comprometidos uniram-se nesta luta. E que lindo é construir um projeto de universidade desenhado por esta comunidade! 

O que dizer a todos e todas que estiveram conosco nesta jornada? Aqueles que sonharam juntos, meus agradecimentos pela confiança e pelo compromisso. No entanto, precisamos seguir juntos e juntas. A democracia é frágil. Ela exige mãos dadas, vontade de construir, coragem para criticar e humildade para ajustar rotas. A democracia, como uma dama exigente, demanda parceria, comprometimento, diversidade, resiliência e resistência.

E o que dizer ao “Brasil Paralelo”, movimentos negacionistas que ainda regurgitam seu ódio, suas mentiras e vilipendiam tudo aquilo que consideramos de mais caro? O que dizer aos que clamaram aos “coturnos e fuzis” para que nos arrancassem de nossas casas e locais de trabalho e que nos silenciassem? 

Temos algumas respostas. Uma delas é que nós não iremos para a Venezuela. Continuaremos aqui, construindo o futuro que sonhamos e que nos dá esperança, ao lado dos nossos parceiros, fortalecendo a democracia deste país que amamos. O Hino Nacional é nosso. A bandeira verde-amarela também. Contra todas as probabilidades, seguimos de cabeça erguida, peito aberto e sorriso no rosto. Nós ainda estamos aqui!

*A autora é Prof. Dra., vice-Reitora da UFSCar

Foto: Reprodução/YouTube