São Paulo tem cheiro de cocô

Curiosamente, respirar o ar fétido que sopra dos rios Tietê e Pinheiros é justamente o evento mais democrático e igualitário da cidade

São Paulo tem cheiro de cocô arte Gilmal - texto aldenor ferreira

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 23/12/2023 às 03:55 | Atualizado em: 23/12/2023 às 08:53

Recentemente, estive na capital paulista e constatei que ela tem cheiro de cocô. Ao percorrer 38 km pela Avenida Marginal Tietê até o Aeroporto Internacional de São Paulo – Guarulhos, foi essa a sensação que tive.  

São Paulo é a materialização de muitas coisas, mas a principal é a estética terceiro-mundista. Um lugar onde o capitalismo mostra todas as suas contradições. Aliás, me arrisco a dizer que não há no Brasil melhor lugar para estudar estas contradições do que em São Paulo. 

Sem dúvida, São Paulo é uma cidade rica. Ela é o coração financeiro não apenas do Brasil, mas de toda a América Latina. Sua participação no PIB nacional em 2020 foi de 9,8%. Já em 2021 a participação foi de 9,2%. Em 2022, o orçamento da cidade foi de 95,8 bilhões de reais. 

Crescimento é diferente de desenvolvimento 

Com efeito, conforme o economista Amartya Sen, há uma enorme diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento. Sen, em seu livro Desenvolvimento como Liberdade (2000), afirma que o desenvolvimento não pode ser medido apenas pelo “aumento do Produto Nacional Bruto (PNB), pelo aumento das rendas pessoais, industrialização, avanços tecnológicos e modernização social”. 

Neste sentido, o desenvolvimento, segundo Sen, precisa ser visto “como um processo de expansão das liberdades”. Para ele, “uma sociedade verdadeiramente desenvolvida é aquela que conseguiu expandir a liberdade individual para além da possibilidade de aquisição de bens tangíveis”.

Ainda para Sen, o desenvolvimento “requer que se removam as principais fontes de privação de liberdades: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos”. 

Tomando como referência os escritos de Sen, pode-se afirmar que a cidade de São Paulo é rica do ponto de vista do PIB, porém não é desenvolvida. Ela possui indicadores socioeconômicos bastante elevados de pobreza, de concentração de renda e exclusão social. Na questão ambiental, infelizmente, a cidade é um desastre. 

Esgoto a céu aberto 

São Paulo é a materialização de todas as contradições que são inerentes à ordem capitalista. Com efeito, para mim, sua maior contradição é conviver pacificamente com o esgoto a céu aberto, atravessando a cidade inteira. 

Curiosamente, respirar o ar fétido que sopra dos rios Tietê e Pinheiros é justamente o evento mais democrático e igualitário da cidade. Ou seja, desta tragédia ambiental todos participam. Ninguém escapa. Ricos e pobres, homens e mulheres, crianças e adultos, enfim, todos sentem o cheiro de cocô da cidade mais rica do Brasil. Não há contradição maior que esta. 

Todavia, parece que o cheiro de cocô voltou a incomodar, pois foi lançado este ano um novo projeto para tentar despoluir o Rio Tietê. Por meio de parceria público-privada serão investidos R$ 5,5 bilhões até 2026, segundo noticiou o site g1 (https://g1.globo.com). Eu não acredito. Há 30 anos eu escuto esta música. Todavia, o rio continua exatamente o mesmo: poluído e fedorento. 

Conclusão 

A conclusão a que eu chego é que não basta possuir um PIB bilionário. Assim como não basta ser importante culturalmente, politicamente e economicamente no continente. Se esta pujança econômica e relevância não possibilitar a reconciliação da sociedade paulistana com a natureza, toda a riqueza produzida na cidade de São Paulo será lógica e ontologicamente inútil. 

É preciso a criação de políticas públicas contínuas de desenvolvimento socioambiental. Políticas sérias que consigam recuperar os rios paulistanos. Isto é absolutamente possível. Existe em Londres e em Paris. 

Sem isto, a cidade de São Paulo será apenas uma cidade rica com cheiro de cocô. O consolo para os paulistanos é que não é apenas São Paulo que vive esta tragédia ambiental. Manaus e Recife também são fedorentas. Já estive por lá, sei bem o que estou falando. 

*Sociólogo

Arte: Gilmal