Ressurreição ou invencibilidade da substância humana: por uma teologia rés ao chão

Ressurreição Fogo

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 01/04/2018 às 00:42 | Atualizado em: 01/04/2018 às 00:42

Por José Alcimar de Oliveira*

 

  1. No plano da razão revelada, a cruz indica que a horizontalidade da morte não tem a última palavra sobre a vida, porque a contingência do existir humano é verticalmente interceptada pelo necessário da verticalidade da Ressurreição. No plano da razão histórica do ser social, a fé na ressurreição cede lugar ao que Agnes Heller chama de “invencibilidade da substância humana”, para a qual nenhuma conquista da humanidade pode desaparecer definitivamente. No fim, o que conta mesmo é cuidar e defender a vida, sobretudo dos que já não têm vida antes da morte.
  2. Numa carta escrita há 150 anos, precisamente no dia 17 de março de 1868, Marx (o Mouro de Trier) assim reconheceu sua atitude diante do mundo: “(…) sempre me movo em contradições dialéticas”. Mesmo sem nenhum registro escrito de natureza autoral, encontramos no Evangelho algo dessa dialética heraclítica e marxiana nas palavras de Jesus de Nazaré: “Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? ” (Eu vim trazer fogo à terra, e como desejaria que já estivesse aceso! – Lc 12,49).
  3. Dos assim conhecidos quatro elementos ontogênicos do ser natural e social (água, ar, terra e fogo), é o fogo aquele que reúne maior força simbólica e transformadora. Sem que tivesse o ser social dominado pelo trabalho o uso do fogo, não teria chegado, para o bem e para o mal, ao atual estágio da nanotecnologia. Por outro lado, também deve ser dito que aquilo que se define por natureza em nada tirou proveito desse domínio ígneo. O que deve a natureza à cultura? Tanto quanto o povo brasileiro em relação aos benefícios da nanociência. Porque submetida que é à nanopolítica, à classe que vive do trabalho só cabe a inclusão rebaixada e degradada na ordem e progresso para poucos.
  4. O mais antigo e renomado filósofo dialético do Ocidente, Heráclito de Éfeso (ca.530-470 a.C.) conferia ao fogo o poder de gerar o devir cósmico e o associava ao Logos que, segundo se pode deduzir de seus sábios fragmentos, era uma inteligência superior, divina, a governar todas as coisas. Para a tradição veterotestamentária o fogo simboliza ao mesmo tempo a palavra de Deus e o julgamento divino, concorrendo para formar e purificar o povo. Jesus de Nazaré, conhecedor que era da Lei e dos Profetas, tinha conhecimento dessa simbologia ontodialética associada ao fogo. Suas palavras, portanto, ao referir-se ao fogo não eram as de um incendiário voluntarista, porque estava consciente de que o processo de formação do povo, de mudança de mentalidade, implicava o trabalho paciente e pedagógico do conceito. Como se algo de hegeliano tivesse o Nazareno.
  5. Jesus combinava em sua práxis a fala direta às multidões com a formação permanente dos 12 como forma de garantir a continuidade do projeto utópico que orientava sua missão. Nunca fez acordo com os dominantes de seu tempo. Se para a esquerda classista e herdeira do materialismo histórico e dialético a colaboração (ou o eufemismo conciliação) de classe é uma forma de traição para a qual não há absolvição, não era diferente – a não ser na terminologia – para o projeto de Jesus de Nazaré. Afinal, qual o único pecado que ele reputava indigno de perdão senão o de quem blasfemasse contra o Espírito Santo, conforme o registro de Mc 3,29: “Aquele, porém, que blasfemar contra o Espírito Santo, jamais será perdoado: é culpado de pecado eterno”. O Espirito Santo é o fogo heraclítico dos cristãos, é o Logos que fundamenta o Projeto do Reino, o daimon que impelia e impedia Sócrates de renunciar ou trair a missão que os deuses lhe confiaram. Não é em forma de línguas de fogo que desce o Espírito Santo sobre os cristãos?
  6. Aplicada ao homem Jesus de Nazaré, essa consciência histórica unia origem e posição de classe a partir dos socialmente deserdados. Penso que o registro de Lucas 4,18-19 é o mais explícito testemunho de consciência de classe de Jesus, quando num sábado, ao entrar na sinagoga de Nazaré – ele que pouco se detinha nos rituais do templo, porque preferia o mundo do povo ao templo das autoridades –, toma nas mãos o Livro do Profeta Isaías e faz uma leitura pública do que ali estava escrito: “O Espirito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor”.
  7. Páscoa de vida a todos e firmeza na luta comum contra as forças tanáticas dos agentes do sociometabolismo do capital. De Heráclito a Marielle Franco, passando por Sócrates, Epicuro, Cristo, Agostinho, Heloísa, Espinosa, Kant, Hegel, Marx, Antônio Conselheiro, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Martin Luther King Jr, Adorno e Paulo Freire, e a lista é lacunar, a história nos mostra que os inimigos da vida não podem cantar vitória, porque abatidas/os na luta ou silenciadas/os, nenhuma dessas grandes figuras, para concluir com Brecht, lutou ou resistiu solitariamente.

 

*O autor, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, é base da ADUA – S. Sind., filho dos rios Solimões e Jaguaribe e devoto do Padim Ciço. Em Manaus, AM, 31 de março de 2018.

 

Foto: Reprodução/Gospel Prime