Réquiem: a morte do charango
Nenhum outro instrumento se harmonizou tão bem e enriqueceu tanto a toada quanto o charango. Foi ele que, verdadeiramente, deu o toque distintivo às toadas de boi-bumbá.

Neuton Correa, por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 20/04/2024 às 05:25 | Atualizado em: 20/04/2024 às 07:21
Esta semana eu fui apresentado às toadas do boi Garantido para o ano de 2024. A lista traz algumas letras excelentes, mas, lamentavelmente, deparei-me com a morte definitiva de um instrumento que foi a essência do ritmo do boi-bumbá no Festival Folclórico de Parintins: o charango.
A toada de boi-bumbá é uma criação genuína de Parintins. Nasceu da criatividade e inovação dos poetas, cantores e compositores locais. Evoluiu, se refinou, viajou e conquistou reconhecimento nacional e até mesmo mundial.
Tornou-se o ritmo do Amazonas, a expressão musical de um estado que ansiava por uma identidade musical própria. Isso, sem dúvida, foi um marco histórico. Surge, então, a pergunta: o que levou a toada de boi-bumbá a alcançar tal sucesso, a ponto de se tornar a identidade musical de um estado e de toda uma região?
A singularidade do charango
Sem dúvida, o segredo do êxito da toada foi a sua singularidade. Um ritmo incomparável, envolvente e empolgante, nascido da fusão de diversos elementos culturais, da criatividade e da combinação de diversos instrumentos.
E,entre eles, destacava-se o charango, instrumento cujo som se sobressai por sua brilhante ressonância.
Nenhum outro instrumento se harmonizou tão bem e enriqueceu tanto a toada quanto o charango. Foi ele que, verdadeiramente, deu o toque distintivo às toadas dos bois de Parintins. Este pequeno instrumento de dez cordas tem uma trajetória fascinante, que reflete a rica interação entre as culturas na região dos Andes.
O charango tem suas raízes originárias no período da colonização espanhola na América Latina, mas desde os tempos pré-colombianos já existiam ancestrais seus.
A sua evolução demonstra como a música pode transcender fronteiras e resistir ao tempo, preservar antigas tradições e, ao mesmo tempo, adaptar-se às influências modernas.
O charango, portanto, é verdadeiramente uma joia da cultura andina, e sua introdução nas toadas dos bois de Parintins foi fundamental para a construção de um ritmo original na Amazônia brasileira. Foi, com certeza, o elemento que encantou e inspirou pessoas em todo o Brasil.
O apagamento é um erro
Contudo, ao longo das últimas produções musicais, tanto do boi Garantido quanto do boi Caprichoso, o charango tem gradualmente perdido importância. Ele é cada vez mais relegado ao segundo plano.
Ano após ano, os arranjos, as gravações e as mixagens o prejudicam e o apagam ainda mais. Isso é um grande erro.
Atualmente, o que predomina nas toadas dos bois de Parintins são strings, pads, synths, metais, órgãos e até mesmo guitarras.
Um exagero.
Não sou contra a inovação ou a experimentação. Afinal, a toada evoluiu precisamente por meio de experimentações. Inclusive, o próprio charango, assim como o teclado e o naipe de metais, é resultado de experimentação.
No entanto, acredito que há limites para tanto incremento.
Nesse sentido, o “desaparecimento” do charango das toadas não representa uma evolução musical. Pelo contrário, trata-se de um retrocesso. Um erro técnico e, sobretudo, um erro cultural.
O charango deve ser o protagonista nos arranjos, não ficar escondido nas camadas mais profundas e quase inaudíveis da mixagem.
Nas toadas dos bois para o ano de 2024, pelo menos as que ouvi até agora, mesmo com fones de ouvido, é difícil discernir claramente a presença do charango. É preciso um enorme esforço para ver que ele ainda está lá, desprezado e quase morto.
Conclusão
Concluo, enfatizando que o sucesso da toada, em nível local, regional, nacional e mundial, deve-se à sua originalidade, à sua harmonização diferenciada, à sua sonoridade agradável e única. E o charango foi um dos responsáveis por essa singularidade.
Além disso, ninguém deseja ouvir mais do mesmo. Strings, pads, synths, metais, órgãos, guitarras são importantes? Sim, claro que são. No entanto, esses elementos são comuns em muitas músicas populares brasileiras.
A toada não deve ser uma imitação de axé music, de piseiro, de calypso ou qualquer outra tendência musical presente no país. Na música, menos é mais.
Portanto, é crucial resgatar o charango nas toadas de boi-bumbá.
Preencher a toada com uma variedade de instrumentos não fará com que o ritmo de Parintins se destaque. Pelo contrário, apenas o tornará mais um ritmo comum, perdendo sua singularidade e caindo na mediocridade musical tão prevalecente em nosso país.
É importante entender que a identidade cultural não é afirmada pela homogeneidade, mas, sim, pela heterogeneidade, pela diversidade, pela diferença.
O ritmo de Parintins, a toada de boi-bumbá, não pode ser mais do mesmo.
A toada precisa continuar diferente, mantendo sua singularidade e especificidade. Neste sentido, ao menos para mim, é essencial devolver o protagonismo ao charango e não o deixar desaparecer das toadas.
*O autor é sociólogo
Arte: Gilmal