Raduan Nassar, um anjo torto

"Acho que uma camaradagem com o Anjo do Mal é um dos pressupostos da nossa suposta liberdade".

Raduan Nassar, um anjo torto Arte: Gilmal

Neuton Correa, por Ilka de Oliveira Mota*

Publicado em: 14/09/2024 às 07:15 | Atualizado em: 14/09/2024 às 07:20


“Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra disse: 
Vai, Carlos, ser gauche na vida.” 

Carlos Drummond de Andrade, “Poema de Sete Faces”

Em “A origem da tragédia”, Nietzche afirma que há duas pulsões que habitam a psique humana: apolínea e dionisíaca. Essas forças não atuam como pares opositivos, mas também não convivem harmoniosamente. Elas fazem parte da complexidade que constitui o Homem e é o que o torna demasiado humano, aludindo-nos a outra obra do mestre prussiano, “Humano, demasiado humano”.  

Na literatura mundial, encontramos alguns romancistas nos quais essas forças estão presentes, como Fiódor Dostoiévisk, Liev Tolstói, Gustave Flaubert, por exemplo. Na literatura brasileira, temos nada mais, nada menos que João Guimarães Rosa, Hilda Hilst, Clarice Lispector. Não poderíamos deixar de mencionar aqui, é claro, Raduan Nassar, escritor que sempre manteve aceso, na tessitura de seus escritos, o anjo do mal. 

A propósito, em entrevista dada ao Cadernos de Literatura Brasileira, em 1996, Raduan confessa: “acho que uma camaradagem com o Anjo do Mal é um dos pressupostos da nossa suposta liberdade. Impossível deixá-lo de fora quando eu pensava em fazer literatura. Não se pode esquecer que ele é parte do Divino, a parte que justamente promove as mudanças. Seria mais este Anjo que está presente nos meus textos.”.

Abandono precoce 

Raduan abandonou a literatura precocemente, o que levou seus leitores a questioná-lo. Além dos romances Lavoura Arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978), ele escreveu uma coletânea de contos intitulada “Menina a caminho”, que reúne “O ventre seco”; “Menina a caminho”; “Mãozinhas de seda”; “Hoje de madrugada” e “Aí pelas três da tarde”. 

Embora o período dedicado à literatura tenha sido curto, sua obra é marcante, grandiosa, robusta, tanto é que foi galardoado com o Prêmio Camões de Literatura, em 2016, pelo conjunto da obra. 

Por que Raduan parou de escrever tão jovem? Esta é uma pergunta ainda feita na atualidade e eu me arriscaria a respondê-la: com seus romances, Raduan alcançou a potência da palavra, o grau máximo do lirismo. Em entrevista, a respeito da obra Lavoura Arcaica, Raduan disse que levou toda uma vida para escrevê-la, o que fica evidente, nesse seu comentário, que o tempo da obra não é o tempo cronológico. 

André, narrador e protagonista de Lavoura Arcaica, é o filho pródigo às avessas, carnavalizado, para usar o termo do teórico literário russo Mikhail Bakhtin, pois, diferentemente da parábola bíblica do Evangelho de Lucas, não há arrependimento quando de seu retorno ao lar de origem. Jovem, filho de pais de origem libanesa, André é um dos sete irmãos de uma família patriarcal, regida por códigos éticos e morais rígidos, uma das razões de sua partida. 

O incesto 

Considerado o anjo torto da família, André apaixona-se obstinadamente por sua irmã Ana, com quem tem relação incestuosa, contradizendo os sermões do patriarca baseados nos princípios bíblicos e na afirmação da tradição. O jovem justifica seu amor e o incesto numa leitura irônica do que professa o pai: “a felicidade só pode ser encontrada no seio da família” (Nassar, 1999, p. 63).

André só retorna de seu exílio porque o primogênito, Pedro, representante da autoridade paterna, o convence a regressar, revelando ao leitor que, embora não suporte aquela família arcaica, ela o constitui, é seu alter ego: “[…] e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ […] estamos indo sempre para casa.” (Nassar, 1999, p. 18).

André, o enfermiço, o possuído pelo anjo do mal nassariano ou pelo que Nietzsche chamaria de força dionisíaca, ama intensamente Ana, amor esse responsável pela destruição daquela família patriarcal. 

Complexo em sua constituição, André, personagem trágico, da Hýbris – do grego ‘desmedida’ –, quer sentir o amor em sua plenitude, ainda que seja um amor imoral; amor desmedido a partir do qual é possível experimentar o élan da vida ou, como o romance deixa entrever, a vida úmida, característica dionisíaca por excelência: “[…] a minha vontade incontida era de cavar o chão com as próprias unhas e nessa cova me deitar à superfície e me cobrir inteiro de terra úmida.” (Nassar, 1999, p. 16).

Lavoura Arcaica na literatura mundial 

Esse amor carrega a semente da destruição, o que garantirá um fim, no mínimo, trágico, talvez um dos mais trágicos da literatura mundial. Essa entrega total à vida, esse tipo de pulsão trágica está presente em outras obras literárias. O que haveria em comum em Lavoura Arcaica, Emma Bovary e Anna Kariênina, por exemplo?

Em todas elas, os personagens protagonistas fogem à norma estabelecida, desafiando a sociedade de seu tempo. Em Emma Bovary, de Flaubert, a personagem Ema, casada com um marido pacato, insosso e tedioso, busca uma vida mais estimulante e dionisíaca e se entrega a casos extraconjugais. Ela se entrega ao movimento, à paixão, ao gozo, pouco se importando para as consequências dessa busca. 

Na obra de Tolstói, Anna Kariênina é casada com Karenin, um oficial do governo que não lhe dá atenção. Sem se importar com os valores patriarcais da sociedade russa da época, ela trai a função sagrada, primordial, de uma mulher: o de mãe e esposa. Num ato de paixão tresloucado, foge com o seu amante Vronsky. 

Nessas personagens e em André há um desejo forte pela vida, pelo êxtase, pela paixão, pelo delírio, que se opõem à aridez da ordem social dominante. Sem nenhum temor, eles embriagam-se no universo dionisíaco e têm, todos eles, um fim não menos trágico.  

No caso de André, a sua irmã Ana é assassinada pelo pai autoritário: é preciso arrancar a erva daninha para o reestabelecimento da lavoura. Num golpe de fúria e contrariando ao que pregava em seus sermões, o pai, encolerizado, ceifa a vida da filha para garantir a retomada da ordem na lavoura. 

O surpreendente é que, embora o pai esteja mais propenso à força apolínea, força essa caracterizada pela harmonia, ordem, clareza e paciência, nesta cena, por seu turno, ele é tomado por súbita força dionisíaca, o que evidencia o fato de essas forças atuarem dialeticamente.

O anjo do mal

O anjo do mal também se apossou de Lula, o irmão caçula. A força, a paixão, o desejo, a ânsia pela vida também o acometeram tanto é que, no final do romance, Lula promete a André: “Não vou falhar como você.”, sinalizando que ele abandonaria a sua casa em busca da liberdade e urbanidade que tanto almejava e não mais retornaria, diferente de André. A mesma semente que instaura a dissolução da família também permite, a um só tempo, a liberdade, a possibilidade de uma vida úmida, dionisíaca. 

A obra de Raduan carrega em seu bojo toda essa complexa densidade. Em sua escrita ressoa a força dionisíaca responsável pela mudança e rompimento de paradigmas. Vale dizer que a subversão não está somente no modo de constituir seus personagens, nos temas tabus e na linguagem lírica que tece as suas obras, mas também e principalmente na humanidade de suas ações. Refiro-me ao homem Raduan, à humanidade que há em seus gestos. 

Para além da literatura, mas em consonância com ela, Raduan é um homem visionário. Em meados de 2014, ele doa a sua fazenda Lagoa do Sino ao Governo Federal a fim de transformá-la em uma instituição de ensino e pesquisa. Uma região antes conhecida como Ramal da Fome por seu baixo IDH e marcada pelo ideal nazista, dá lugar à produção do conhecimento, à transformação de vidas e das cidades que compõem o sudoeste paulista. 

Nosso país é marcado pela concentração fundiária, grandes desigualdades sociais e pouco afeito ao investimento em educação. Raduan, sensível a todos esses problemas, deu sua contribuição para transformá-lo. 

Um brinde a Raduan Nassar, a sua força e ousadia!

*Linguista e analista de discurso