“Quem tem medo do gênero?”: uma conversa sobre a linguagem neutra

Nesta crônica, a autora destaca que alterações orgânicas da língua não são impostas, mas reflexo dos diferentes usos e contextos dos falantes. Leia o que diz Giulia Mendes Gambassi.

Ednilson Maciel, por Giulia Mendes Gambassi*

Publicado em: 09/06/2025 às 14:02 | Atualizado em: 09/06/2025 às 14:02

O livro mais recente de Judith Butler, Quem tem medo do gênero? (Boitempo, 2024) é escrito a partir de sua experiência no Brasil, em 2017, quando foi alvo de ataques e ameaças de violência física por grupos “antigênero”. 

Nele, Butler relaciona esse movimento ao fascismo e mostra como “gênero” funciona como um fantasma, condensando medos e ansiedades diversas. Assim, atribui-se às discussões e dissidências de gênero boa parte do mal que supostamente ameaça a humanidade.”

Porém, foi quando voltava para casa após uma aula sobre linguagem e diversidade na Unicamp que, pela primeira vez, precisei lidar, ao vivo e em cores, com esse medo: o motorista do carro por aplicativo que me transportava perguntou minha opinião sobre a imposição da linguagem neutra e do gênero para as crianças. E eis que começamos, em um percurso de 20 minutos, uma conversa assombrada pelo gênero.

Sobre a linguagem neutra e a ideologia de gênero

Comecei perguntando o que ele entendia por linguagem neutra, mas ele não soube me explicar. Compreensível, muitos estudiosos da área também enfrentam esse desafio – linguagem neutra, linguagem não binária e linguagem não sexista são alguns dos termos que contornam essa temática. 

Em seguida, falei um pouco sobre variação linguística ao decorrer do tempo para poder explicar que alterações orgânicas da língua não são impostas, mas reflexo dos diferentes usos e contextos dos falantes. Apontei, então, que a principal questão da chamada linguagem neutra não é acabar com o uso das flexões do feminino e do masculino, mas respeitar como a pessoa com quem falamos quer ser chamada. 

Para contextualizar, mencionei que assim como perguntamos o nome de alguém ou até mesmo para qual time torce ao começarmos uma conversa, o uso da linguagem neutra se refere a um exercício mínimo de respeito, não a uma imposição. Ele não pareceu muito convencido e fez outra pergunta: “mas e o que estão querendo levar para as escolas? A imposição do gênero às crianças?”, perguntou, acrescentando: “sou contra levar crianças à Parada Gay”. 

Perguntei se ele já tinha ouvido falar da chamada ideologia de gênero. A resposta veio carregada de preocupação e inconformismo. Lembrei-o, então, de que no dia a dia identificamos ideologias de esquerda, de direita e de centro no âmbito político e que, por mais que às vezes não queiramos nos associar a nenhuma delas, percebemos que nossos valores e ideais são melhor representados por um ou outro grupo. Ele assentiu. 

Então repeti a famosa frase da ex-ministra Damares Alves – “meninos vestem azul e meninas vestem rosa” – e afirmei que isso já era ideológico. Logo, a ideologia de gênero, na verdade, sempre existiu, não sendo uma ameaça articulada pela esquerda, mas um conjunto de convenções que partilhamos socialmente. 

Destaquei que o mais importante para quem questiona essas convenções não é convencer o outro de que o que ele acredita não existe, mas evidenciar que a forma como lemos o mundo é reflexo de uma construção discursiva, não sendo algo imutável ou indiscutível.

E a Marcha para Jesus?

Ouvi uns murmúrios no banco da frente e coloquei mais uma questão: “o senhor já ouviu falar da Marcha para Jesus?”. Prontamente ele respondeu que sim, afinal, é um evento que acontece em diversos lugares do país e que reúne milhares de pessoas, sendo, ano após ano, noticiado em grandes jornais. 

Em seguida, comentei que, mesmo não sendo adepta à marcha, eu sabia que era algo importante para aquela comunidade e imaginava que os pais que levavam seus filhos queriam compartilhar seus valores mais preciosos. Algo similar, expliquei, acontece na parada gay. 

Ideais como liberdade, diversidade e direito a ser quem se é são valores muito importantes para essa comunidade e, assim como os pais cristãos, as famílias LGBTQIAPN+ e seus aliados também desejam compartilhar com seus filhos esses valores – incentivando as crianças a deixarem de lado o preconceito herdado pelas convenções sociais.

Não sei qual efeito essa conversa de fato teve, se ele realmente estava aberto a ouvir respostas que diferiam das ideias que estava acostumado a (re)produzir, mas essa experiência me fez pensar na importância de dialogarmos e evidenciarmos que as discussões sobre gênero não são uma declaração de guerra contra um conjunto específico de valores, mas um convite a uma visão crítica sobre as certezas que herdamos sem reflexão.

Quando vemos a necessidade visceral de defender a ideologia conservadora, heterossexista e cisnormativa de gênero, isso apenas evidencia o fato de que sexo e gênero são construções sociais. Afinal, se se tratasse de algo natural e indiscutível, não seria necessário convencer os outros de que determinadas expressões são as mais corretas. Nesse sentido, o movimento antigênero, ao buscar moralizar as formas de expressão de identidade, acaba por implodir aquilo mesmo que acredita defender

Muitos são os autores que estudam e discutem a arbitrariedade do gênero, havendo defesas mais discursivas, outras mais sociológicas. De todo modo, o ponto comum é que, assim como um texto, também os corpos são lidos segundo códigos que aprendemos ao longo da vida. Se sabemos reconhecer uma fábula ou uma notícia é porque entendemos os traços que caracterizam determinado gênero textual. Esse aprendizado é parte do letramento escolar.

Mas somos mais que textos: não precisamos ser classificados ou seguir categorizações fixas. Nossa existência escapa aos moldes previsíveis do feminino ou do masculino a todo o tempo. E, se por um lado, tenta-se controlar e constranger nossa singularidade ao sexo atribuído ao nascimento, por outro, assume-se que expressar-se com liberdade é a forma mais honesta de honrar nossas vidas.

Considerações finais 

Chegando ao meu destino – depois de contrariar o pressuposto de que a anatomia é destino –, percebi que muitas vezes não vamos estar prontos ou dispostos a debater determinados assuntos, mas, mesmo que seja no banco de trás de um carro, no meio do trânsito, com o tempo contado e as palavras ainda em elaboração, defender a liberdade talvez seja nossa maior arma para afastar os fantasmas que rondam o imaginário social.

*A autora é doutora em Linguística Aplicada e professora da Unicamp.

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil