Pelo fim da exclusão dos trabalhadores!
"A classe trabalhadora, e isso é uma tendência, não quer mais só comida; ela quer comida, diversão e arte"

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 26/03/2022 às 01:49 | Atualizado em: 26/03/2022 às 01:49
Na música Cidadão, de Zé Ramalho, há uma análise singular do processo de exclusão social e econômica do trabalhador nordestino, que ajudou a construir cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, mas que sempre foi excluído da riqueza dessas cidades.
Logo no primeiro verso da canção, o eu lírico conta a história de um trabalhador nordestino que ajudou na construção de um belo edifício, passando por muitas aflições nesse processo. Depois de finalizado o projeto, ele não consegue nem sequer contemplar a beleza daquilo que ajudou a erigir, pois é constrangido e indagado se está ali apenas admirando o prédio ou armando alguma estratégia para roubá-lo.
A partir do que é exposto na canção, podemos dizer que, de fato, os(as) trabalhadores(as) brasileiros(as), de modo geral, não têm acesso a muitos dos lugares que ajudaram a construir dentro da sua própria cidade. Se ele(a) for negro(a) ou indígena, a situação se agrava ainda mais.
Com isso, percebe-se que a classe trabalhadora brasileira vive em um verdadeiro apartheid socioespacial e sociocultural, que se agrava ainda mais com a derrocada econômica do país nestes tempos.
Pode ser uma verdade inconveniente, mas é importante reconhecer que os produtores da riqueza nacional – os trabalhadores – não desfrutam dos espaços de cultura e de lazer onde vivem, também não tendo acesso aos bens simbólicos (cinema, teatro, bibliotecas etc.) de suas cidades, ao menos não como deveriam.
A classe média e a elite nem percebem que isso ocorre – ou se percebem, não ligam –, mas é fato que quando o(a) trabalhador(a) se dirige a um shopping, a um teatro, a um cinema, a um balneário, ou a uma loja de grife, há sempre olhares desconfiados acompanhados da frase que ficou famosa na canção de Zé Ramalho: “tu tá aí admirado, ou tá querendo roubar?”. E ainda que não seja dita, essa frase é, de alguma forma, pensada.
A exclusão da classe trabalhadora vem de longa data e de diversas fontes, dentre as quais está a herança cultural cruel e covarde de um país que manteve o seu sistema escravocrata até o limite, sendo o último país do ocidente a se livrar da escravidão. A exclusão econômica, social, cultural e espacial causada por séculos de exploração e violência nunca foi devidamente enfrentada pelas elites dirigentes desse país.
À guisa de exemplo, os imponentes e luxuosos Teatro Amazonas – inaugurado em 1896, em Manaus – e Teatro da Paz – inaugurado em 1878, em Belém – foram construídos pelas divisas arrecadadas por seus estados com a exportação da borracha, mas nunca pertenceram ao povo, à classe trabalhadora, que muitas vezes só entra nesses espaços como mão de obra para limpar o chão ou reformá-los.
Se sairmos às ruas de Manaus ou de Belém e perguntarmos às pessoas se elas já estiveram nesses locais para assistirem a algum espetáculo, a resposta poderá ser surpreendentemente negativa, pois muitos responderão que nunca sequer entraram nesses prédios.
Contudo, essa triste realidade não ocorre só em Manaus ou Belém, ela se manifesta em outras capitais e cidades brasileiras, também no que diz respeito a outros espaços de cultura e de lazer. Como exemplo, podemos lembrar que a maioria dos sul-mato-grossenses nunca visitou os santuários ecológicos da cidade de Bonito, com sua natureza exuberante, pois é um município terrivelmente caro e excludente.
Nesse sentido, muitos trabalhadores(as) da cidade de Penha, em Santa Catarina, nunca tiveram um dia de lazer em Beto Carrero World, bem como cearenses de Fortaleza que nunca foram ao Beach Park ou os fluminenses que só conhecem as praias de Búzios pelo mapa. Enfim, a lista é quase interminável.
É a partir desses pontos que afirmo que o Brasil é o país do apartheid racial, socioespacial e sociocultural. Alguém pode achar que exagero nessa afirmação, mas se há delimitação de acesso a determinados espaços na cidade, se há territórios e territorialidades excludentes devido a questões raciais ou econômicas, há apartheid. Não podemos hesitar nesse entendimento.
Ademais, é válido lembrar que as cidades brasileiras foram projetadas para a exclusão, refletindo uma mentalidade escravocrata, elitista, retrógrada que, infelizmente, na maioria das vezes, está presente nas políticas públicas relacionadas à mobilidade urbana, à construção de moradias, saneamento, escolas, complexos esportivos e demais infraestruturas de cultura e lazer.
Afinal, o que está por trás dos projetos de urbanismo (da maioria deles, pelo menos) é a velha lógica do “ponha-se no seu lugar”, afinal, pobre precisa reconhecer e ser mantido em seu lugar. Mas que lugar seria esse? Na visão dessa elite escravocrata, a resposta seria o não-lugar, a invisibilidade, a distância, a não existência.
Ocorre que a classe trabalhadora, em todos seus os níveis, que inclui o povo pobre desse país, mas não só, não aceita mais a exclusão nem dos espaços físicos e nem dos espaços simbólicos. E, a cada dia, tomando consciência de si e das questões históricas que envolvem sua alienação, reivindicam, cada vez mais, a sua inserção nos espaços sociais e culturais das cidades.
Parafraseando a música dos Titãs, a classe trabalhadora, e isso é uma tendência, não quer mais só comida; ela quer comida, diversão e arte; ela não quer mais só comida; ela quer saída para qualquer parte.
Os trabalhadores não estão parados na esquina admirados ou querendo roubar, eles exigem participar e usufruir dos espaços de suas cidades, ter acesso aos bens simbólicos e ao que a riqueza que eles mesmos constroem todos os dias pode propiciar.
É uma reivindicação justa, é uma luta pelo fim de sua exclusão – no sentido amplo da palavra.
*Sociólogo
Foto: Reprodução/IBGE