Parintina, uma menina

Artigo critica a toada "Parintina rainha" por sexualizar e desrespeitar mulheres e crianças indígenas.

Diamantino Junior

Publicado em: 19/04/2024 às 14:01 | Atualizado em: 19/04/2024 às 14:01

Por Dassuem Nogueira *

Como mulher, fico extremamente aliviada com a polêmica causada pela toada “Parintina rainha”. Como pirralha que um dia fui, vibro com o fato de o público do boi-bumbá de Parintins não estar mais disposto a tolerar as imagens que a letra dessa toada invoca.

Como uma das quatro membras da comissão de artes do boi Garantido, poderia ficar constrangida por uma toada com tantos desrespeitos à mulher, à criança-menina e às minorias étnicorraciais tenha sido aprovada para o álbum anual do festival. Mas, o constrangimento não é meu.

Foi sem constranger-se que os envolvidos na composição, aprovação, produção e divulgação dessa toada se colocaram em situação vexatória. Contudo, entendo que certos amadurecimentos políticos vêm com constrangimento público.

Por isso, agradeço imensamente a todas que se indignaram. Especialmente, às minhas parceiras, amigas e colegas de profissão da comissão de artes, que reclamamos a feiura e desserviço dessa toada desde que ela passou por nós até agora.

O mundo bovino é muito machista. Note-se que não há mulheres entre os artistas de ponta de alegorias nos bois Caprichoso e Garantido. Note-se que as compositoras mulheres dos bois, juntas, cabem nos dedos de uma mão.

Note-se que há apenas uma levantadora de toadas oficial nos dois bois. Note-se que nenhum item individual masculino se apresenta exibindo o seu corpo semidespido.

Não há simetria de gênero nem em batucada e marujada, nem em vaqueirada, itens considerados como o reduto da velha guarda de suas comunidades.

Não lhes digo nenhuma novidade quando pontuo tais coisas, o mundo é machista.

A maioria dos homens, inclusive os mais bem intencionados, muitas mulheres e membros das comunidades LGBTQIA+ não escapam à naturalização de ideias como a de que os corpos de meninas e mulheres são, em si, um convite ao sexo, fenômeno que foi nomeado como sexualização.

Ao sexualizar os corpos de mulheres e meninas, impelimos a elas a ação da sedução. Assim, se um homem se sentir atraído pelo corpo de uma mulher ou menina, a culpa é dela, que o está provocando com o seu corpo.

Tais ideias socialmente naturalizadas, como se fossem um dado da natureza, a biológica realmente, reforçam o que se chama de cultura da violação.

A cultura da violação não diz respeito apenas à profusão de atos sexuais não consentidos, mas a um conjunto de ideias que levam a comportamentos invasivos sobre o corpo de meninas e mulheres.

Uma outra ideia fortemente arraigada em nossa sociedade é o racismo. O racismo não é apenas os crimes de discriminação ou injúria racial explícitos, ele estrutura a sociedade por meio de ideias. Dentre elas, a noção de qual cor é o corpo que será sexualizado.

Note-se que “Parintina rainha” não é uma toada dirigida à sinhazinha, que é a menina branca da fazenda. As toadas feitas para a sinhazinha, a branca, a associam a uma princesinha, bailarina, mademoiselle (senhorita, em francês, pronome de tratamento formal que impõe respeito).

Nada se fala sobre seu corpo como objeto de desejo sexual, mas sobre seus talentos de bailarina, sua virtude como mademoiselle, sua graça e beleza brancas.

A sinhazinha é apaixonante, desperta nobres sentimentos.

Em oposição, temos em “Parintina rainha” um reforço à ideia racista de que a menina “índia, cabocla, pirralha, trigueira” não tem outra virtude se não a sexual.

“Parintina rainha” jamais seria toada de uma sinhazinha em respeito a tudo o que ela representa, mas serviu à parintina, a pirralha indígena descendente que brinca de boi no terreiro.

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‘Parintina rainha’, ponto a ponto

Para quem ainda não entendeu a falência múltipla da letra de “Parintina rainha”, farei um exercício de interpretação.

A letra é a descrição de um ato sexual com uma “pirralha”, sinônimo de menina, que tem etnia e cor, pois é uma menina indígena, cabocla e trigueira (que denota cor escura, marrom como o trigo, o cereal).

“Parintina dengosa, fogosa, faceira”.

Sexualiza-se o corpo de uma menina, pois as virtudes da personagem parintina se resumem às sexuais.

“Índia, linda, cabocla, pirralha, trigueira”.

Note-se que parintina tem raça, cor e idade: uma criança, indígena, cabocla e trigueira (morena)

“Levita, lateja, lampeja”.

É a descrição de orgasmo de uma menina.

“Incendeia o terreiro pro boi balançar”.

Incêndio que, no caso, denota o desejo sexual, atiçado por uma menina que dança em um lugar público, onde dança o boi.

“Me atiça, me alcança, me laça; Me beija com graça, me faz delirar; Me ama, me denga, me benze; Me assanha na manha, eu só quero te amar”.

Todo esse trecho passa a ideia de que quem seduz e está sexualmente ativa é parintina, a menina. O homem narrador da letra é um seduzido, passivo, ele não tem agência.

“É no compasso da toada, que eu te abraço; No emaranhado das tuas curvas, eu me encaixo; No caqueado do gingado, me alucino; E no teu colo, sou teu homem, teu menino”.

Novamente, o corpo da menina é sexualizado, a sua dança também, o trecho outra vez narra o ato sexual com a menina.

Se ainda assim, nada incomodar, recordo-lhes o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente (lei federal 8.069/1990), em seu artigo 18:

“É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

É nosso dever legal com crianças e adolescentes zelar para que não sejam constrangidos. E a toada invoca imagens perversas.

Para o bem de todas as meninas parintinas e da cidade que dá nome à toada, pelo bem maior do festival como expressão de uma cultura popular centenária, que dá fama e sustenta financeiramente o município, e que é o carro-chefe da cultura do Amazonas, estado que leva o nome de bravas guerreiras indígenas; pelo bem de tudo que conseguimos com a repercussão da participação de Isabelle Nogueira, cunhã poranga do boi Garantido, em um programa de televisão com ampla repercussão nacional; o mínimo que se espera da agremiação é que retire a toada de seu álbum, das plataformas e de seu projeto de arena.

E que se desculpe.

A mácula está aí para os compositores e para os homens envolvidos na linha produtiva que jogou aos quatro ventos, como se nada demais fossem, as imagens contidas na toada.

*A autora é antropóloga.

Ilustração: Gilmal