Para o amazonense, o igarapé é tudo!
Com o crescimento desordenado, facilitado pela ausência de um plano diretor adequado, Manaus se transformou em uma “assassina” de igarapés

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 19/08/2023 às 02:00 | Atualizado em: 19/08/2023 às 08:04
Igarapé, caminho de canoa em tupi, é, antes de tudo, o espaço da sociabilidade. Na verdade, na Amazônia, água e homem se complementam de forma singular há milênios. Por aqui, mesmo com toda a modernidade destes tempos hodiernos, “o rio ainda comanda a vida”, como observou Leandro Tocantis.
Os rios são fundamentais para a manutenção da vida material e, também, da vida simbólica da população amazônica. É pelos rios que a vida escorre. Por eles passam a vida da ictiofauna, a vida botânica, a vida vinda da agricultura, a vida econômica e a vida religiosa de cada habitante. Os rios são, portanto, vias naturais de importância estratégica para toda a Amazônia.
Apesar de ser tentador falar dos grandes rios da Amazônia, hoje quero me ater a um corpo d’água menor, que qualquer sulista chamaria de rio, riozinho ou córrego: o igarapé. Para o amazonense, seja ele do interior ou da capital, o igarapé é, ao mesmo tempo, via de deslocamento, fonte de alimentação e lugar de lazer.
A vida dos trabalhadores amazonenses, assim como a vida de outros trabalhadores brasileiros, é marcada por constantes desafios e por inúmeras dificuldades no seu cotidiano. A semana é inteira é de faina, por sinal, bastante exaustiva para homens e mulheres que vivem quase que exclusivamente para o trabalho, este direito que, a cada contrarreforma trabalhista, se torna cada vez mais precarizado, flexibilizado e diminuto.
Neste sentido, no final de semana é preciso brincar de “pular n’água” em um igarapé nas redondezas da cidade. Pular n’água é uma ação, um comportamento, uma marca indelével do modo de vida do povo amazonense, do amazônida de modo geral.
A água é o elemento fundante de nossas práticas socioculturais. O ato de banhar-se demoradamente no igarapé, no meio da floresta, de realizar ali várias brincadeiras, é um divertimento aquático inigualável. Com efeito, não se trata de um simples banho, mas, sim, de um deleite. É um momento importante de sociabilidade, de compartilhamento de alegria, de fraternidade, onde o mais importante é simplesmente brincar e se divertir.
Manaus
Em Manaus, a prática do banho em igarapé já foi bem mais popular do que é hoje. Antes da explosão demográfica da cidade havia igarapés por todas as partes, de acesso rápido e fácil. Atualmente, já não é mais assim. Com o crescimento desordenado, facilitado pela ausência de um plano diretor adequado, a cidade de Manaus se transformou em uma “assassina” de igarapés.
Na cronologia do assassinato, o Balneário do Parque Dez de Novembro, inaugurado em 1940, abastecido pelas águas então límpidas do Igarapé do Mindu – que por muito tempo foi atração turística da cidade –, sucumbiu diante do esgoto e das construções irregulares a partir de 1970, sendo derradeiramente extinto no início da década de 1980.
O balneário popular conhecido como “Ponte da Bolívia” e a bela Cachoeira do Tarumã também foram destruídos pelo avanço desordenado da cidade, pela falta de planejamento urbano e de saneamento básico, bem como pela incompetência dos gestores locais. Ainda assim, mesmo tendo que ir mais longe, muita gente continua mantendo o hábito de se banhar nos igarapés nos finais de semana.
Concluo fazendo uma sugestão aos vereadores da cidade de Manaus, bem como de outras cidades amazonenses. Caso ainda não seja, sugiro tornar o banho de igarapé um patrimônio cultural imaterial da cidade, afinal, o igarapé na vida do amazonense é tudo.
*Sociólogo
Arte: Gilmal