Os privilégios das “castas” no Brasil
"Se o Brasil deseja se consolidar como uma verdadeira democracia, precisa eliminar os privilégios de qualquer natureza". É o que defende o sociólogo Aldenor Ferreira em seu artigo semanal.

Ednilson Maciel, por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 15/03/2025 às 05:17 | Atualizado em: 15/03/2025 às 07:46
Apesar dos esforços de muitas pessoas comprometidas com a democracia, ainda não conseguimos consolidar um regime plenamente democrático em nosso país. Continuamos a ser um país autoritário, oligárquico e rigidamente hierarquizado. Temos quase um regime de castas por aqui, com os militares, os membros do Judiciário e da burguesia agrária e urbana formando grupos distintos, com privilégios que os diferenciam do restante da população.
Mesmo com a Constituição Federal de 1988, a democracia não se enraizou profundamente nas nossas instituições, tampouco na mentalidade de uma parcela significativa da sociedade, que insiste em enxergar o autoritarismo como um ideal de vida. A democracia tenta florescer, mas é constantemente sufocada pelos segmentos supracitados, cujos interesses são escusos e nada republicanos.
Instituições autoritárias
O Brasil enfrenta grandes dificuldades para tornar suas instituições mais democráticas. O Judiciário é autoritário, o Congresso Nacional também, as Forças Armadas seguem a mesma lógica. Até mesmo as universidades, sejam públicas ou privadas, muitas vezes fomentam uma cultura autoritária e elitista, com algumas abordagens.
A filósofa Marilena Chaui discute esse tema com profundidade. Segundo ela, além das dificuldades impostas pelo capitalismo para a institucionalização da democracia no Brasil, há ainda dificuldades específicas que a própria sociedade coloca para a construção de um país verdadeiramente democrático.
Para Chaui, nossa sociedade conserva marcas coloniais e escravistas, onde o espaço privado sempre se sobrepõe ao espaço público e a hierarquização se manifesta em todos os aspectos da vida social.
Ainda de acordo com a filósofa, as relações sociais intersubjetivas são estruturadas sob uma lógica de mando e obediência: um superior que ordena e um inferior que acata. As diferenças e assimetrias são transformadas em desigualdades, reforçando essa relação de poder.
Forças Armadas: um sistema paralelo
A análise de Chaui se confirma ao observarmos os privilégios concedidos às Forças Armadas e ao Judiciário no Brasil. Os militares, por exemplo, possuem um regime previdenciário próprio, com regras exclusivas para a aposentadoria. Dispõem de uma Justiça Militar independente, com o Superior Tribunal Militar (STM), e de um sistema educacional separado do restante do país.
Diferentemente de qualquer escola, universidade pública ou privada, as academias militares não estão subordinadas ao Ministério da Educação (MEC). A Lei n. 9.394/96, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), determina em seu Art. 83 que “o ensino militar será regulamentado em lei específica”. Ou seja, um regramento específico para eles. Isso é um absurdo! Educação, seja ela qual for, deve ser regulamentada e gerenciada pelo MEC.
Uns vão para a cadeia, outros para casa
No caso do Judiciário, a lógica é a mesma. Trata-se de um grupo que se coloca como uma “casta privilegiada”, que está acima do restante da sociedade e fora do escopo das leis que regem os cidadãos comuns.
Todavia, se uma pessoa comum, do povo, cometer um crime, será investigada, indiciada, julgada e, caso condenada, cumprirá pena em uma cela insalubre de alguma penitenciária esquecida pelo Estado. Muitas vezes essas etapas nem são cumpridas e a prisão preventiva acaba decretada.
Por outro lado, se um juiz ou promotor de justiça cometer um crime, após o devido processo administrativo, a punição máxima costuma ser a aposentadoria compulsória. Em outras palavras, enquanto uns são encarcerados em jaulas fétidas, muitas vezes sem o devido processo legal, outros vão para casa com as garantias de sustento asseguradas para o resto da vida.
Uma entidade à parte
O Judiciário brasileiro opera como uma entidade à parte, uma espécie de sociedade secreta dentro de um país que luta arduamente para ser democrático. E já foi pior: até 2005, sequer existia um órgão que fiscalizasse de maneira direta a atuação dos magistrados. Somente no primeiro governo Lula foi criado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cuja função, entre outras, é fiscalizar e controlar a atuação do Judiciário.
Além disso, a maioria dos trabalhadores brasileiros têm direito a 30 dias de férias anuais, quase nunca usufruídas integralmente. Entretanto, para os magistrados, esse direito é de 60 dias, sem contar os feriados, pontos facultativos e licenças especiais, como a licença compensatória instituída pela Resolução n. 528, de 20 de outubro de 2023.
Essa norma permite que os magistrados tenham direito a um dia de folga a cada três dias de trabalho. Quando somados ao longo do ano, esses dias extras resultam em aproximadamente 120 dias de folga, ou seja, quatro meses sem exercer suas funções.
Conclusão
Concluo afirmando que, se o Brasil deseja se consolidar como uma verdadeira democracia, precisa eliminar os privilégios de qualquer natureza. Não pode haver leis específicas para determinados segmentos, pois a legislação deve ser geral e aplicada a todos de maneira igualitária.
Curiosamente, os setores que mais se beneficiam com as assimetrias, privilégios e desigualdades – como as Forças Armadas e o Judiciário – são os mesmos que, nos últimos anos, mais atentaram contra a democracia em nosso país. É só lembrarmos da Operação Lava Jato e a “República de Curitiba”, bem como da tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023.
Portanto, é essencial desconstruirmos e desnaturalizarmos essas assimetrias. Como bem ensinou a professora Marilena Chaui, “as diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação de mando e obediência”.
Nesse contexto, aqueles que estão à margem do poder são vistos como sujeitos desprovidos de direitos – uma condição diametralmente oposta à democracia, cujo princípio é justamente a garantia de direitos para todos. Portanto, somente com uma democracia forte pode-se combater e eliminar os privilégios das “castas no Brasil”.
*O autor é sociólogo.
Arte: Gilmal