Os olhos claros e a alma branca do Caprichoso

O importante é que ambos os bois reconheçam a chegada de uma nova era e façam esta transição juntos

Caprichoso de alma branca

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 11/05/2024 às 08:21 | Atualizado em: 11/05/2024 às 08:21

Na semana passada, a direção do Boi-Bumbá Caprichoso reclamou do racismo recreativo praticado pelo amo do Boi Garantido. No entanto, ao se defender, cometeu um deslize ao reproduzir uma frase racista, referindo-se à “dona Siloca: a negra de olhos claros”.

Esta expressão se insere no rol de comentários racistas, semelhante à infame “preto de alma branca”. Na verdade, estas expressões são esforços para elogiar pessoa preta vinculando sua dignidade a traços comumente associados às pessoas brancas. Este episódio me fez lembrar de preconceitos outrora praticados pelo boi das cores azul e branco. 

Aporofobia

O Boi Caprichoso, em várias ocasiões, agiu de maneira preconceituosa em relação à nação vermelha e branca do Boi Garantido, inclusive, refletido em suas toadas. Vejamos um trecho da toada “Boi Tucuxi”:

“Fiquei com pena do contrário. Reúne seu povo pra fazer mutirão. Agora começou desilusão. Vai ter que fazer maromba pra brincar o São João […] é água na baixa, é água no Itaguatinga, campeão do São José, já virou pirapitinga. […] Tá nadando, tá nadando, tá nadando que eu já vi, campeão do São José, já virou Boi Tucuxi”.

Esta toada faz piada com a tragédia das enchentes, zomba da falta de infraestrutura no bairro Itaguatinga, em Parintins, território do Boi Garantido. No entanto, morar em áreas de risco de alagamento, geralmente, não é uma escolha, mas, sim, uma consequência da pobreza e exclusão social.

Embora possa ter parecido engraçado na época, na verdade, é puro preconceito de classe, reflexo de um pensamento e de um comportamento elitista. Em uma análise contemporânea, seria considerado aporofobia, ou seja, aversão aos pobres.

O termo “perreché” e o elitismo

Outro exemplo de preconceito praticado pelo Boi Caprichoso é o uso do termo “perreché” ou “pé rachado”. Esta é uma expressão clássica do preconceito social. Um reflexo direto do pensamento elitista. E veio de lá, veio do Caprichoso. 

Embora hoje em dia esta dinâmica possa ter mudado, outrora, a elite local, composta por funcionários públicos graduados, grandes pecuaristas e empresários, era fortemente ligada ao Boi Caprichoso. Na verdade, eles eram os seus principais mantenedores. 

Mesmo que neguem, os registros históricos do Festival de Parintins indicam que o Boi Caprichoso sempre se proclamou o boi da “sociedade” (elite). Inclusive, usando a frase “o boi da sociedade” como slogan. Há registros disso em imagem. 

Talvez isso tenha mudado, mas, outrora, o Boi Caprichoso impregnava-se de elitismo. E é desse contexto elitista que vem o termo “perreché”. Uma tentativa de desqualificar o outro com base em marcadores socais de natureza econômica e de classe social.

Mas, afinal, quem são os “perrechés”?

No contexto em que surgiu o termo, e ainda hoje, são agricultores, pescadores, extrativistas, caboclos ribeirinhos, trabalhadores(as), em geral, de baixa renda. Com efeito, estas pessoas são dignas e honradas. São pessoas que enfrentam todas as dificuldades e adversidades oriundas de sua condição de pobreza e exclusão social. 

O Garantido ressignificou este termo integrando-o em suas músicas e transformando-o em uma identificação para os torcedores vermelhos. Ser chamado de perreché hoje é motivo de orgulho. No entanto, a origem do termo e o contexto em que sempre foi empregado pelo Caprichoso remetem à discriminação baseada na classe social, à posição econômica que a pessoa ocupa na sociedade, bem como o seu nível educacional, dentre outros aspectos.

Conclusão

O Festival Folclórico de Parintins é um sucesso. No entanto, parece que ambos os bois enfrentam uma crise quando se trata de fazer a transição de suas apresentações folclóricas para um público que não tolera mais – e com razão – nenhum tipo de preconceito.

Neste sentido, os bois de Parintins precisam se modernizar. Ambos já cometeram todo tipo de preconceito e publicaram coisas inapropriadas. No entanto, na sociedade atual, não há espaço para fobias de nenhum tipo. Houve um tempo em que tudo se permitia, hoje não é mais assim. E está tudo bem. 

Em alguns momentos, o Boi Caprichoso já foi preconceituoso, como exposto aqui. De igual forma, o Boi Garantido. O importante é que ambos os bois reconheçam a chegada de uma nova era e façam esta transição juntos. Isto elevará a qualidade da festa e evitará constrangimentos e, até mesmo, o cometimento de crimes.

Aldenor Ferreira*

Arte: Gilmal