O último que sair, que pague a luz!
Este fragmento pertencente à música “Luz da Light”, composta pelo saudoso Adoniran Barbosa, na década de 1950, poderia muito bem embalar um samba enredo retratando o atual momento do Brasil

Mariane Veiga, por Andrey M. Martin*
Publicado em: 12/10/2021 às 12:19 | Atualizado em: 12/10/2021 às 12:44
“La no morro, quando a luz da light pifa, nóis apela pra vela, que alumeia também! Se não tem, não faz mal, a gente samba no escuro, que é muito mais legal!”
Este fragmento pertencente à música “Luz da Light”, composta pelo saudoso Adoniran Barbosa, na década de 1950, poderia muito bem embalar um samba enredo retratando o atual momento do Brasil e a sua crise de fornecimento energético, com a alta das tarifas e a ameaça de racionamento.
Na década de 1950, o Brasil vivia o início de sua expansão industrial, momento em que o Pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945) marcaria o alinhamento nacional com a matriz e a construção de grandes projetos hidrelétricos. Havia otimismo no país em relação ao setor energético, em um contexto fortemente ligado a embates entre privatistas e nacionalistas ante a geração e a distribuição energética no país.
Por outro lado, o sambista denunciava em seu samba a realidade vivenciada pelos moradores da então capital nacional, Rio de Janeiro, que, no limite, era a mesma realidade de grande parte do país. A instabilidade no fornecimento energético poderia ser facilmente observada de Norte a Sul, das capitais ao interior do Brasil.
Mesmo durante o Regime Militar, em que “estranhas catedrais” eram inauguradas, como o Complexo Hidrelétrico Urubupungá ou em vias de construção, como a Hidrelétrica Binacional de Itaipu, ambas no rio Paraná, o fornecimento energético era pendular.
Mas esse fato não era evidenciado porque, em muitos casos, era obrigatoriamente abafado pela sina ufanista do período. Havia proibições explícitas de divulgação da situação em jornais e TV. Ademais, era comum a utilização da estratégia de colocar, ao lado do aviso de racionamento, a notícia de inauguração da próxima hidrelétrica. Veneno e antídoto caminhavam juntos no “Brasil potência” daquele período.
Passados mais de cinquenta anos, o país vivencia, em 2021, a pior crise hídrica dos últimos 91 anos, segundo dados do Operador Nacional do Sistema (ONS), o que traz novamente ao país o risco de racionamento.
Mesmo com as chuvas da primavera, os principais reservatórios do país ainda operam com aproximadamente 21% de sua capacidade, fato que tem causado dúvidas sobre a capacidade de produção de energia no país via hidrelétricas.
Diante da iminente crise energética, sem plano efetivo, o governo tem apelado para o bom senso da população, como pontuou o Ministro de Minas e Energia: “caso a população não economize energia, desligando, por exemplo, os equipamentos quando não estiverem em uso, haverá racionamento”.
No início de setembro, o governo já havia anunciado a nova bandeira tarifária, denominada de “escassez hídrica”, que é ainda mais onerosa que a conhecida “bandeira vermelha 2”, acumulando uma alta de 49% no preço, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
À guisa de informação, a tarifa desta nova bandeira é de R$ 14,20 por 100/kWh, ante a anterior, bandeira vermelha 2, que é de R$ 9,49 por 100/kWh. No meio do ano, os valores já haviam subido, no montante, cerca de 52 %, segundo dados da Aneel.
Estes valores são diretamente adicionados à conta, independentemente do valor da tarifa de energia. O principal motivo de elevação das bandeiras é o acionamento de termelétricas ou compra de energia de outros países, geralmente da Argentina e Uruguai, como ocorreu este ano.
Para piorar, juntamente com manutenção do mecanismo tarifário até abril de 2022, a Câmara dos Deputados resolveu aproveitar o contexto para realizar mudanças em medida provisória aprovada em junho deste ano.
Inicialmente, a proposta da MP era estabelecer ações ante a situação hídrica e energética, porém, tais mudanças podem se tornar uma daquelas histórias que terminará, daqui um tempo, produzindo a seguinte manchete: “…entenda o novo escândalo na CPI da energia…”.
No melhor estilo toma lá dá cá, que marca a política nacional, pode-se adiantar que esta mudança pode custar, a médio prazo, mais de 50 bilhões de reais e, pelas experiências que tivemos em crises energéticas em tempos de Collor e FHC, já sabemos quem arcará com a conta.
Dentre as alterações, os relatores aproveitam para atender incentivos previstos no processo de privatização da Eletrobrás, que estipulavam metas de compra de energia de termelétricas a gás natural existentes no Nordeste, Centro-Oeste e Norte.
Mais um problema nos salta aos olhos: todas estas regiões não possuem no momento reservas suficientes para atender tal demanda. E qual seria a solução segundo a MP? Construir milhares de gasodutos.
É válido e importantíssimo o debate acerca das nossas estruturas de produção e distribuição de energia, mas a proposta causará aumento direto das tarifas, que serão certamente repassadas aos consumidores.
Conjuntamente, nas entrelinhas das alterações realizadas, ficou prorrogado o prazo para que as termelétricas que funcionam movidas a carvão, diretamente de maior impacto, se reestruturem e migrem para um combustível menos poluente. O problema é que essa matriz energética vai de encontro a todos os acordos ambientais do quais o Brasil é signatário.
Ademais, o que a maioria do povo brasileiro não sabe é que essas térmicas possuem subsídios para seu funcionamento, com custos de mais de 2 bilhões de reais com esta prorrogação.
O que fica evidente, de todo este jogo de escalas, são os descompassos que influenciam o planejamento do setor energético, não descartando a real problemática ante a falta de chuvas, como ocorre neste momento, mas pelas sucessivas interferências de grupos políticos e econômicos no processo de tomada de decisões.
A MP chegou a ser colocada novamente em pauta no plenário, mas devido às críticas e ao conjunto de manifestações contrárias a ela, foi retirada, ao menos até a atual data. Não há como negar que a palavra “retrocesso” me vem à mente com muita força neste momento.
Mais do que as tentativas de terminar este texto, ao toque dos sucessivos apagões, o que me preocupa é a frase dita pelo relator da MP Adolfo Viana: “Não vamos aumentar a conta de luz do Brasileiro”. Será?
O último que sair, que pague a luz…
*O autor é historiador.
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil