O tiro no pé do amo do boi Garantido

A performance do amo do boi Garantido, obviamente, recebeu uma enxurrada de críticas

Mariane Veiga, por Dassuem Nogueira

Publicado em: 03/05/2024 às 19:07 | Atualizado em: 03/05/2024 às 19:08

Na festa realizada por uma das patrocinadoras do Big Brother Brasil, a Kwai, para a cunhã-poranga Isabelle Nogueira, antes da tradicional Alvorada do boi Garantido, em 30 de maio, o amo João Paulo Farias, protagonizou cenas racistas.

A cena se deu poucas horas depois da dissolução do imbróglio em torno do artigo 55 do regulamento, sobre as penalidades aos itens microfonados que viessem a “provocar” o boi contrário.

O amo João Paulo Farias levou uma cabeça do boi Caprichoso, de tecido preto, com pinturas faciais brancas de padrão africano, acoplada no corpo de um mosquito aedes aegypti.

O mosquito transmissor da dengue e outras doenças tem como característica ser preto com pintas brancas.

Juntando a microalegoria ao seu verso, João Paulo Farias quis dizer que, ao se apropriar culturalmente das pinturas de padrões africanos, o boi Caprichoso mais se assemelhava ao mosquito da dengue do que a algo legítimo.

Contudo, ao fazer a associação, o amo terminou ridicularizando as pinturas africanas.

É como se ele dissesse que as pinturas parecem com as rajas do mosquito da dengue, de modo jocoso.

O amo também estendeu no chão um pano preto e espalhou o conteúdo de um saco de carvão sobre ele, dizendo ser o Caprichoso.

E aqui o ponto crítico é que o carvão, por ser preto, é amplamente utilizado como adjetivo para ridicularizar a cor de pessoas negras.

Assim como macaco, tição, mulata, entre outros, o termo carvão quando utilizado para adjetivar cor é carregado de sentido racista.

A performance do amo do boi Garantido, obviamente, recebeu uma enxurrada de críticas.

Entre elas, uma nota de repúdio do quilombo de São Benedito, localizado no bairro Praça 14 de janeiro, em Manaus, o primeiro quilombo urbano reconhecido pela Unesco como patrimônio imaterial da humanidade.

Na nota, o quilombo repudia João Paulo Farias por praticar racismo recreativo, que consiste em produzir imagens racistas para entreter, fazer graça.

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Emenda pior que o soneto

As defesas do amo João Paulo Farias, feitas por internautas e perfis de conteúdo bovino, argumentam que a ação do amo não tem como configurar racismo por se tratar de um boi de pano cuja cor é preta, e não uma pessoa.

A questão, como exposto acima, é que as pinturas foram ridicularizadas.

Ainda que fosse um boi de cor laranja ou verde, a questão está em dizer que as pinturas são semelhantes às rajas do mosquito, a fim de ridicularizá-las.

Alegam ainda que o boi Caprichoso, em diversos momentos do passado, teve práticas semelhantes ou piores.

Gostaria de lembrar que, até 2018, os dois bois faziam “black face” em plena arena do bumbódromo.

O “black face” é a prática de pintar o rosto e o corpo de cor preta para ridicularizar pessoas de cor negra.

Lembrem-se que Pai Francisco e Mãe Catirina se apresentavam assim, fazendo graça. Ainda recolhiam adereços caídos no chão, como nenhum outro item fazia – mesmo não competindo, eles são itens obrigatórios.

A prática foi repudiada em carta aberta lida pelo presidente da comissão de jurados de 2018, antes da apuração, de modo elegante para o tema.

Na ocasião, foi contra-argumentado que essa era uma tradição dos bois.

Espero não contar nenhuma novidade, mas existem tradições racistas. E que não devem ser mais toleradas.

*A expressão significa tentar consertar algo e deixá-lo pior do que estava.

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Grandes poderes, grandes responsabilidades

A transmissão e a cobertura nacional do Festival Folclórico de Parintins pela Rede Globo aumenta a responsabilidade social dos bois com o que se dispõem a representar.

O festival de Parintins, como toda manifestação cultural popular, tem um caráter instrutivo.

Primeiramente, sobre sua própria história.

E, em segundo lugar, pelas histórias que escolhe contar, no caso, a da diversidade amazônica.

A visibilidade que a festa terá pode ser também um tiro no pé, pois os itens oficiais, a reboque de Isabelle Nogueira, terão holofotes sobre si dentro e fora da arena.

Atitudes como a do amo João Paulo Farias não serão toleradas.

Além disso, essa é uma manifestação cultural de interesse público, pois realizada com dinheiro público. E também privado, de empresas que têm ou não interesse em associar suas imagens na vitrine do festival dos bois Garantido e Caprichoso.

Por fim, é de se perguntar: qual mensagem queremos passar?

Ao mesmo tempo em que se propõe a promover a diversidade etnocultural da Amazônia, constante em regulamento (artigo 2º), lançamos ao mundo imagens racistas. É uma mensagem, no mínimo, incoerente.

A autora é antropóloga.

Arte: Gilmal