O Sputnik e os paradoxos da modernidade
Aldenor Ferreira celebra os avanços do Sputnik para lamentar que esses mesmos avanços possibilitaram que demônios comemorassem os assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 18/06/2022 às 00:01 | Atualizado em: 18/06/2022 às 11:06
Em 1957, foi lançado pela então União das Repúblicas Soviéticas (URSS), o satélite artificial Sputnik. Esse acontecimento, sem dúvidas, criou as bases para a revolução tecnológica e industrial de nosso tempo, trazendo consigo mudanças profundas na sociabilidade humana.
Acerca desse tema, Hannah Arendt, no texto A condição Humana (2007), observou que esse feito ultrapassou todos os outros, até mesmo a desintegração do átomo. O curioso, porém, afirma a autora, “é que essa alegria não foi triunfal; o que encheu o coração dos homens que, agora, ao erguer os olhos para os céus, podiam contemplar uma de suas obras, não foi orgulho nem assombro ante a enormidade da força e da proficiência humana. A reação imediata, expressa espontaneamente, foi alívio ante o primeiro ‘passo para libertar o homem de sua prisão na Terra’”.
O Sputnik permaneceu durante algumas semanas na órbita da Terra, seguindo a mesma lei de gravitação que a Lua. Tal feito foi saudado com grande entusiasmo pela URSS, afinal, tratava-se de uma das maiores realizações científicas do país naquele momento. A partir daí, inaugurou-se uma nova era na história da ciência, da tecnologia e da própria humanidade.
Diante desse quadro tecnológico moderno, Arendt, a partir de um juízo de constatação, afirma que “aquilo que os homens haviam antecipado em seus sonhos, sonhos que não eram loucos nem ociosos, realizou-se plenamente”.
De fato, o Sputnik foi o primeiro passo dado rumo ao desenvolvimento das telecomunicações, que, possibilitaram outras descobertas científicas e inovações tecnológicas. De lá para cá, passamos a viver em um ambiente “técnico-científico-informacional” – para citar, aqui, o geógrafo Milton Santos – cada vez mais complexo.
No campo econômico, Anthony Giddens afirma que a taxa de inovação tecnológica promovida pela indústria moderna é muitíssimo maior do que em qualquer outro tipo anterior de ordem econômica: “o capitalismo promove a constante revisão da tecnologia de produção, um processo em que a ciência está cada vez mais envolvida”.
Assim, a partir da realidade técnico-científico-informacional, o cotidiano de homens e mulheres, bem como da natureza, nos quatro cantos do planeta, foi profundamente alterado. Surgiram novos produtos eletrônicos, químicos, farmacêuticos, médico-hospitalares e de diagnósticos de saúde, além de novos instrumentos mecânicos e de complexos e sofisticados sistemas de comunicação, de navegação, de transportes etc.
Contudo, parece que todo o avanço científico e tecnológico do mundo moderno não se traduziu em efetiva garantia de manutenção da vida no planeta, tampouco na elevação espiritual da humanidade. O modo de vida contemporâneo é invariavelmente insustentável do ponto de vista do ambiente e claramente deprimente do ponto de vista da ética, da solidariedade, das liberdades e dos valores democráticos.
Desse modo, paradoxalmente ao desenvolvimento científico e tecnológico ocorrido em muitos países, houve o aumento da desigualdade social, da degradação do meio ambiente e, fundamentalmente, o recrudescimento da xenofobia, do nacionalismo tacanho, da corrupção, do narcotráfico e do autoritarismo.
Vivemos, portanto, cotidianamente, “as consequências [e os paradoxos] da modernidade”, como descrito por Giddens, pois temos tecnologia de ponta em nossos lares, mas uma centena de pedaços de satélites desativados (lixo espacial); temos amplo acesso à informação, mas vivemos a era da pós-verdade.
Ainda, destaca-se a abundante oferta de alimentos na triste realidade de milhões de pessoas passando fome em todo o mundo, além de medicamentos de ponta indisponíveis apenas para os que não tem os recursos necessários e morrem à sua espera. Por fim, sublinho as garantias constitucionais de liberdade de expressão, de credo e de culto que acabam por serem censuradas pelo poder político, econômico e religioso. Não é exagero constatar que estamos bem servidos de contradições.
Logo, mesmo que pela primeira vez na história tenhamos condições materiais e simbólicas para nos tornamos seres humanos melhores, paradoxalmente, não avançamos tanto nisso. Por sua vez, o mal não perde a oportunidade de se aproveitar dessas mesmas condições.
Certamente o Sputnik possibilitou a criação do “admirável mundo novo” da internet e das redes sociais – algo bom, necessário a todos(as) –, entretanto, contraditoriamente, esse mesmo espaço deu voz a demônios que, supostamente, são seres humanos.
No Brasil, especificamente, esses demônios, utilizando-se da tecnologia da informação, chegaram ao poder, institucionalizando práticas e comportamentos deploráveis, como comemorar e divulgar nas redes sociais o assassinato cruel e covarde de ativistas ambientais em pleno santuário amazônico.
Atualmente, em poucos lugares do mundo vive-se, de forma tão aguda, os paradoxos da modernidade como no Brasil. Precisamos mudar isso, urgentemente.
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*Sociólogo
Foto: Reprodução/YouTube/EuroNews