O senso comum erudito e a BR-319

Embora muitas pesquisas possuam o status de científicas, não passam de senso comum. É o caso de algumas pesquisas e textos sobre a BR-319

O senso comum erudito e a BR-319 arte Gilmal

Neuton Correa,

Por Lúcio Carril e Aldenor Ferreira*

Publicado em: 14/09/2024 às 04:00 | Atualizado em: 14/09/2024 às 07:14

No livro A formação do espírito científico, Gaston Bachelard afirma que é preciso tomar cuidado com o senso comum erudito. Segundo ele, esse seria um tipo de conhecimento refém da academia e que transita somente nela.  

O senso comum erudito, afirma o filósofo francês, é um obstáculo epistemológico para o desenvolvimento do conhecimento. Ele diz que “a cidadela erudita contemporânea é homogênea e protegida” e arremata afirmando que “é confortável para a preguiça intelectual limitar-se ao empirismo, chamando um fato de fato e proibindo a busca por leis”. 

Neste âmbito, embora muitas pesquisas possuam o status de científicas, não passam de senso comum. Em muitos casos, é o senso comum erudito reafirmando e reforçando preconceitos sociais e geográficos. É o caso de algumas pesquisas e textos sobre a BR-319 publicados por certas “autoridades” acadêmicas no Amazonas.  

Uma sublimação 

O artigo intitulado “Serviços ambientais da Amazônia: por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial” é a materialização do que afirmamos sobre o senso comum erudito. É uma sublimação. O texto, repleto de autocitações, reconhece a existência e a trafegabilidade precária da rodovia, porém comemora uma possível incapacidade do Estado brasileiro para reconstruí-la quando afirma que: “não representaria um sacrifício” para o povo amazonense.

Após isso, o autor segue, na mesma linha dissuasiva, para o campo pernicioso da economia, dizendo que “a rodovia não é economicamente viável” e que o transporte de produtos da Zona Franca de Manaus é mais barato usando o “sistema de barcaça com carretas até Belém”. 

Este argumento do “economicamente viável” é incompatível com o conceito mais elementar de Estado. Dizer que a BR-319 não tem importância econômica é uma falácia. Só o parque industrial de Manaus teve este ano um faturamento de 100 bilhões de reais. Ademais, a BR-319 não pode ser vista como uma empreitada de mercado – quem faz obra com esse viés é empresa.

O Estado tem a obrigação de atender 5 milhões de brasileiros, que pagam impostos e cumprem com suas obrigações civis, assim como tem a obrigação de proteger o meio ambiente. O Estado não tem que fazer política pública com a condição de viabilidade econômica. A BR-319 tem justificativa social e cultural, de integração e melhoria da qualidade de vida, por meio do acesso terrestre a produtos alimentícios mais baratos.

Em Manaus, ninguém come peças, placas de aço, produtos eletrônicos e veículos de duas rodas. Boa parte de nossa comida vem pelo Rio Madeira, que hoje se encontra com 65 centímetros de profundidade, ou seja, sem navegabilidade. A trafegabilidade comprometida da BR-319, sim, é um sacrifício para esses milhões de brasileiros que moram no meio da floresta amazônica.

Um argumento pueril 

Em um argumento pueril, o autor coloca os estados do Amazonas e Roraima em uma condição de “apartheid social” em relação ao restante do Brasil. Diz que Manaus tem apenas 1% da população do país e que os outros 99% é que bancariam os custos da rodovia. 

Escreve isso com as tintas do preconceito geográfico e étnico-racial, como se os povos da Amazônia não tivessem direito às políticas públicas que não sejam pautadas pelo tamanho do PIB da região. Trata-se, portanto, de um discurso apelativo, que busca colocar brasileiros contra brasileiros, como se o pacto federativo e a integridade nacional fossem um jogo de toma lá, dá cá. 

Por fim, o autor deixa escapar um “conhecimento mal estabelecido”, para citar novamente Bachelard. Ele claramente defende a tese da natureza intocada, um mito, segundo Antônio Carlos Diegues. Ainda, o defensor do santuário amazônico sem gente, com sua visão edênica da natureza, propõe um boicote internacional ao comércio brasileiro de soja e carne, caso a BR-319 venha a ser reconstruída. 

Porém, para a infelicidade do autor, que por sinal dialoga com ele mesmo no texto, fato que compromete a integridade acadêmica do artigo, o presidente Lula acaba de anunciar a retomada das obras da BR-319. O presidente veio ao Amazonas e viu a necessidade do modal terrestre diante das mudanças climáticas que, pelo segundo ano consecutivo, deixou nossos rios secos e nossas populações em desespero. 

Conclusão

Sem qualquer espírito de xenofobia, podemos afirmar que quem sente o “calo doer é quem calça o sapato”. Falar da Amazônia lá do alto da Torre Eiffel ou desprezar nossos povos enquanto olha pelo microscópio a asa de uma borboleta é muito fácil. Seria bom se envolver com o objeto de estudo e vir carregar a mãe nas costas, no lamaçal, até o posto de saúde mais próximo que, normalmente, fica a quilômetros da estrada.

O povo do Amazonas não está pedindo a abertura de uma rodovia. Ela já existe há 47 anos e até hoje é usada com muito sacrifício para transporte de alimentos e de pessoas. As comunidades de agricultores familiares, ribeirinhos, extrativistas, indígenas que habitam o entorno da BR-319 sofrem muito para escoar seus produtos. A rodovia vai beneficiar gente pobre, trabalhadora. Rico vem de avião ou helicóptero direto para as suas fazendas. Talvez se fosse para atender gente rica, a rodovia já teria sido recuperada. 

*Sociólogos