O que a cunhã-poranga do boi nos diz sobre a mulher indígena?

A realidade indígena mostra que ideias como ‘força’ e ‘beleza’ são bastante complexas, e variam de povo para povo

O que a cunhã-poranga do boi nos diz sobre a mulher indígena?

Por Juliana Oliveira, da Redação do BNC Amazonas

Publicado em: 23/06/2025 às 20:16 | Atualizado em: 23/06/2025 às 20:45

A cunhã-poranga é o item 9 do Festival Folclórico de Parintins. Na língua tupi-guarani, cunhã-poranga significa “mulher bonita”. Esse item pretende incorporar a força e a beleza da mulher indígena. Uma guerreira, com grande cocar de penas, braçadeiras, perneiras e, às vezes, maracás.

A cunhã-poranga certamente tem um papel importantíssimo no festival e no imaginário amazônico. Contribui para desconstruir estereótipos em torno do que significa ser “mulher indígena”. Entretanto, a cunhã-poranga em si mesma constrói um imaginário do que seja a força e a beleza das mulheres indígenas da Amazônia.

E as realidades indígenas mostram que ideias como ‘força’ e ‘beleza’ são bastante complexas, e variam de povo para povo.

O Festival Folclórico de Parintins tem grande potencial didático. Pessoas que nunca estiveram em uma aldeia, sem qualquer familiaridade com a questão indígena, ao assistir ao espetáculo podem aprender muitas coisas sobre os povos amazônicos.

Os bois-bumbás falam de diversos povos, suas culturas e tradições e, ao mesmo tempo, constroem e veiculam estereótipos por meio dos seus itens oficiais.

De miss do boi a cunhã-poranga

Ao surgir como item, a cunhã-poranga tinha um sentido de miss do boi: ela era a mulher mais bonita da aldeia. As misses do boi usavam maiôs, coroas, cedros, faixas e desfilavam pela arena.

Após a promulgação da Constituição de 1988 e o reconhecimento dos direitos indígenas na carta magna, a cunhã-poranga passou a recorrer ao estereótipo da mulher indígena guerreira que, com seus braços, mimetiza o uso de um arco e flecha.

De lá para cá, o boi-bumbá Garantido já teve 11 cunhãs-poranga: Tammy Pereira, Marisol Drummond, Moza Santana, Jacqueline Marques, Valéria da Carbrás, Alessandra Brasileiro, Lilian Linhares, Tatiane Barros, Verena Ferreira, Rayssa Bandeira e a atual, Isabelle Nogueira.

O boi-bumbá Caprichoso já teve 9: Luisiana Medeiros, Maria Cecília Monteiro, Daniela Assayag, Marlessandra Fernandes, Marlessandra Santana, Jeane Benoliel, Isabel de Souza da Silva, Maria Azêdo e a atual, Marciele Albuquerque.

As atuais cunhãs-porangas dos bois-bumbás Caprichoso e Garantido são mulheres de longos cabelos pretos e lisos, corpos musculosos, abdômens definidos, narizes afilados, dentes brancos e simétricos.

Marciele Albuquerque (Caprichoso), do povo munduruku, e a manauara Isabelle Nogueira (Garantido) encantam todos aqueles que assistem seus espetáculos.

As galeras vão à loucura quando as cunhãs caem de joelhos no chão, como o êxtase que Daiane dos Santos nos proporcionou com seu duplo twist carpado nos anos 2000.

Se, por um lado, a cunhã-poranga contribui para a desconstrução de imagens tradicionais do “feminino”, por outro lado, o item 9 incorpora e veicula em si mesmo um estereótipo sobre o que é ser mulher indígena na Amazônia.

Foto: Apib/reprodução

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Ideias ameríndias sobre beleza e força

As mulheres zo’és mencionadas na toada “Guerreira das lutas”, em geral são fortes, usam o cabelo amarrado e seu cocar feito com penas de urubu-rei.

As mulheres mundurukus também podem ser grandes e fortes, como ilustra o caso das lideranças Leuza e Alessandra Korap, por exemplo.

Ser bela nem sempre é sinônimo de magreza, músculos sobressalentes e cabelos longos e lisos. Ao contrário, entre muitos povos, ser forte e ter gordura corporal é sinônimo de beleza. Ter um corpo grande e gordo indica que determinada mulher tem vínculos de parentesco: pessoas que cuidam do seu bem-estar, um ou mais caçadores a seu dispor.

Manter o cabelo cortado e alinhado, com um desenho bem definido, pode indicar o bem-estar feminino.

As mulheres do povo korubo do Vale do Javari, por exemplo, raspam a parte posterior da cabeça e deixam uma franja frontal cortada em formato de meia-lua. Para elas, ser mulher bonita é ter gordura corporal e estar com seu cabelo cortado. Cabelo grande é sinal de velhice e descuido. Magreza é sinal de adoecimento.

A cunhã-poranga do boi-bumbá também encarna a força da mulher indígena guerreira, a lutadora.

No cotidiano das aldeias, nota-se com frequência a participação de mulheres de diferentes povos em expedições de caça, pesca e coleta, no preparo e na distribuição dos alimentos.

Mulheres podem acompanhar os homens em caçadas, por exemplo. Carregar pesados cestos com produtos da roça, alimentos, crianças e animais de estimação. Em muitos povos, elas são responsáveis pela produção de artefatos diversos, como redes, cestos, tipoias para carregar crianças etc.

A força das mulheres indígenas vem disso também. Além da retórica da guerra e da luta no movimento indígena contemporâneo, há uma dimensão de força que tem a ver com o saber-fazer bem aquelas atividades que a definem como mulher dentro de uma divisão do trabalho com outras pessoas que vivem juntas.

Cunhã-poranga é a mãe indígena?

É curioso notar que a arte do tema do Caprichoso neste ano (“É tempo de retomada”) ilustra uma mulher indígena gestante, carregando seu filho no braço esquerdo e um terçado no braço direito.

Lembra-nos a falecida Tuíre Kayapó: símbolo da resistência indígena feminina que, com seu terçado encostado no rosto de um diretor da Eletronorte em 1989, parou a construção da hidrelétrica Belo Monte, no rio Xingu.

Tudo leva a crer que a arte no tema do Caprichoso 2025 seja a de uma mulher indígena, uma mãe que luta e trabalha. Uma mulher indígena ativamente reivindicando seus direitos, como o direito à terra.

Ao mesmo tempo, a cunhã-poranga não é a mãe indígena, é a jovem guerreira que aparece mais com arco-flecha do que com terçados e cestos.

É a jovem guerreira que aparece mais com cocar de pena do que com crianças, animais e alimentos.

Para diversos povos indígenas, existem outros sentidos de ser bela e forte.

O item 9 do festival folclórico do Amazonas tem sua importância para a valorização dos povos indígenas e de sua luta. Contudo, cria outro sentido de força e beleza indígena feminina.

Se o item 9 não é ‘A mulher indígena’ (com A maiúsculo), pois não existe uma única forma de ser mulher indígena, ele incorpora apenas uma parte (e não a totalidade) do que seja a força e a beleza das mulheres indígenas da Amazônia.

A autora é antropóloga.

Fotos: reprodução/internet