O Paraná do Aduacá e a nossa topofiliação
O autor foi buscar o amor que tem pelo lugar onde nasceu para explicar, teoricamente, como, em cada um de nós, nasce esse pertencimento

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 11/06/2022 às 05:08 | Atualizado em: 11/06/2022 às 05:08
O texto de hoje é em homenagem àqueles que, assim como eu, nasceram no Paraná do Aduacá, especialmente àqueles que são da comunidade rural Santíssima Trindade, município de Nhamundá/Amazonas.
Sobre esta comunidade, afirmo que até hoje não encontrei ninguém que renegue o tão afortunado destino de ter nascido lá. Todos nós temos muito apreço por aquelas paragens, sentimento de pertencimento único que nos liga àquele lugar e que nos faz, mesmo distantes, querer sempre retornar.
Do ponto de vista de sua organização espacial e arquitetônica, não há nada naquela comunidade que a diferencie das demais.
Desde o lago do Aduacá até o rio Nhamundá, afluente da margem esquerda do rio Amazonas, a paisagem natural e humanizada é praticamente a mesma. No centro das comunidades tem-se: o porto, a igreja, a escola, o posto de saúde, a caixa d’água, o telefone comunitário e as casas.
Mesmo com essa descrição, é possível questionar o porquê de amarmos tanto esse lugar. Afinal, ainda não me deparei com nenhum(a) filho(a) de lá que, vivendo fora da comunidade, em outra cidade, estado e até mesmo em outro país, ao ser inquirido(a) sobre a comunidade, não se refira a ela com afeto e com saudades.
A explicação para esse amor, para esse sentimento de pertencimento tão arraigado, vem da nossa topofiliação ou topofilia, como preferirem. Esse conceito foi desenvolvido pelo geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan e está contido nas suas obras Topofilia (2012) e Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência (2013).
Nessa direção, no texto Da terra seca à terra molhada: revisitando Euclides da Cunha, escrito por Antenor Ferreira, Odenei Ribeiro e por mim, lançamos mão do conceito de topofiliação para explicar a relação entre o lugar e a percepção das pessoas. Retomo, aqui, de forma resumida, a análise feita nesse texto para explicar, ao menos sociologicamente, o nosso amor pelo Aduacá e pela Trindade.
No texto Topofilia, tratando da ambientação humana, Tuan estabelece uma relação entre o lugar e a percepção dos indivíduos, que é dada pelos sentidos. Segundo ele, o corpo humano é sempre o ponto de partida na relação com o ambiente, no sentido de que todos os significados surgem a partir dele. Assim, é na relação com o ambiente, afirma o autor, que se tem a construção de conceitos e vocabulários, bem como a definição de tons, de sentidos de orientação, de espaço, entre outros.
Desse modo, o espaço e o lugar de nascimento são elementos definidores do ser humano porque a partir daí é que se inicia a sua ambientação, a sua percepção e a sua definição de ser no mundo. Esses fatores têm, portanto, grande importância na visão de mundo de um indivíduo, pois se ela “não é derivada de uma cultura estranha, necessariamente é construída pelos elementos conspícuos do ambiente social e físico de um povo”.
Mas mesmo perante essa exposição, a indagação continua: afinal, de onde surge o amor pelo lugar?
A esse respeito Tuan pontua que o amor pelo lugar surge a partir das experiências, e esse amor não advém somente do prazer e da satisfação que nele se obtêm, mas também das lutas travadas pela sobrevivência, pelo processo de trabalho árduo, ou mesmo por um encontro amoroso, por um folguedo, ou por uma lembrança de perda etc. Ou seja, as dificuldades enfrentadas e as emoções vividas podem forjar o sentimento de orgulho de sobrevivente, tornando o lugar das lutas o locus de sentimentos profundos.
Ainda, o autor aponta que esse amor é transformado em ponto de referência para ação, deixando claro que o lugar é uma referência construída na mente a partir dos objetos existentes no mundo, manifestando-se, muitas vezes, em forma de lembranças. Desse modo, ainda que o sujeito esteja distante fisicamente dele, o lugar continua a exercer a sua influência como uma âncora.
Sem dúvida, o Paraná do Aduacá continua exercendo influência sobre nós, filhos(as) daquela terra. Saímos de lá e nos tornamos escritores(as), professores(as), administradores(as), economistas, jornalistas, homens e mulheres de fé, empresários(as), políticos(as), cientistas sociais, entre outros, mas o lugar nunca saiu de nós.
Tudo está devidamente gravado em nossa memória afetiva. Cada elemento natural ou social desencadeia lembranças boas, como: o lago, a curva do rio, as árvores, a igreja, a escola, o posto de saúde, as casas, o campo de futebol, as histórias e estórias, trazendo-nos sensações únicas.
Ademais, temos orgulho de ser do Paraná do Aduacá, somos todos(as) caboclos(as) pávulos(as), como diríamos na linguagem local, temos uma topofiliação singular: nascemos em uma comunidade rural triplamente abençoada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo. Trata-se da comunidade Santíssima Trindade, e isso não é pouca coisa.
*Sociólogo
Foto: Rosana Tavares