O narcogarimpo e os povos indígenas de Roraima
Os problemas que assolam os Yanomami expressam também o abandono dos povos indígenas durante o governo de Jair Bolsonaro

Ferreira Gabriel, por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 27/09/2023 às 12:13 | Atualizado em: 27/09/2023 às 12:13
A crise humanitária dos Yanomami na fronteira do Brasil com a Venezuela foi amplamente divulgada e transformou-se em um constrangimento nacional e internacional para o Brasil.
As imagens dos indígenas desse povo em pele e osso por causa da desnutrição e acuados por ataques de garimpeiros às suas comunidades circularam o mundo.
A situação foi compreendida como expressão máxima do abandono dos povos indígenas durante o último governo.
Esse, por sua vez, empenhou-se em facilitar a exploração predatória na Amazônia e se engajou pela legalização de mineração em terras indígenas. Essa última, ainda em processo de votação pelos parlamentares.
Júnior Nicácio, advogado do Conselho Indígena de Roraima, CIR, falou no encontro Mercados Ilegais e violências na fronteira com a Venezuela, ocorrido esse mês na Universidade Federal do Amazonas, UFAM.
O evento foi realizado pelo Coletivo Ilhargas com apoio do Pulitizer Center, uma instituição americana que financia o jornalismo independente.
O advogado reafirmou a fala de outras lideranças indígenas que dizem não haver justificativa para que o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros representantes do governo neguem não saber da situação. Vários alertas e pedidos de ajuda foram lançados, inclusive internacionalmente.
Para Rosiene Carvalho, jornalista que mediou a mesa, a sociedade brasileira fez tal como a sociedade alemã e europeia diante do holocausto: “nós fizemos um pacto silencioso de não fazer nada, pois todos tínhamos informações sobre o que estava acontecendo”.
Contudo, dada a ampla cobertura midiática do caso e as ações emergenciais nos primeiros três meses do ano, Junior Nicácio, afirma que o caso não foi solucionado. Ao contrário, a retirada dos garimpeiros espalhou o problema para outras terras indígenas.
Além disso, o processo de desintrusão dos garimpeiros na Terra Indígena Yanomami nunca se completou.
O advogado informou que os garimpeiros expulsos da Terra Indígena Yanomami não deixaram de existir. Parte deles se dirigiu a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a maior do Brasil, também no estado de Roraima, cujo subsolo resguarda uma das maiores jazidas de diamantes do planeta.
As lideranças indígenas do estado, mesmo com ausência do governo, se mobilizam para fazer a proteção e coibir a invasão. Elas procuram coalisão com outras entidades indígenas para fazer o monitoramento das áreas de intrusão.
O representante do CIR gostaria que a sociedade não se interessasse por casos como o dos Yanomami apenas enquanto durasse a cobertura da imprensa. Junior Nicácio se pergunta qual o plano do governo sobre o tema para além da Terra Indígena Yanomami?
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O garimpo em Roraima é um projeto de estado
Rodrigo Chagas, professor de sociologia na Universidade Federal de Roraima, também falou no encontro do Coletivo Ilhargas. Sua pesquisa sobre o garimpo aponta elementos pouco explorados para a compreensão do problema no estado.
A entrada do narcotráfico e sua associação com o garimpo é um deles.
Para o professor, que também é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o garimpo em Roraima é um projeto do estado brasileiro.
Ele aponta que há no Centro Cívico, a praça central que concentra os três poderes em Boa Vista, capital de Roraima, um monumento em homenagem ao garimpeiro. Isso porque, embora ilegal, o garimpo faz parte da história do estado.
O território de Roraima foi criado em 1962. O governo militar da época via na atração de garimpeiros uma forma de colonizar a região.
Foi nessa época que a atividade foi relacionada a função social de proteção da fronteira. Foi dado ao garimpeiro um status de herói nacional.
A proteção da soberania nacional por meio da proteção das fronteiras de uma possível ameaça internacional era um discurso amplamente propagado durante a ditadura.
Interessante notar que o estado já era completamente ocupado por vários povos indígenas. Porém, esses não foram vistos como ocupantes daquele vasto território.
Secundariamente, houve a atração dos empresários do garimpo. Esses levaram aviões, dragas e abriram estradas.
Para Chagas, “a garimpagem conta com o efeito manada, garimpeiros são atraídos pela promessa de ganhar dinheiro rápido e fácil”.
Já em 1988, Hélio Campos, o primeiro governador de Roraima, endossou a vocação econômica do estado para o agronegócio e a mineração com diversas políticas de incentivo a essas atividades.
Vê-se, como expressão disso, que o garimpeiro está no brasão do estado.
Atualmente, Roraima tem um governador publicamente engajado por políticas pró-garimpo.
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O PCC mudou o garimpo
Rodrigo Chagas retoma alguns fatos que ajudam a compreender o fenômeno recente da associação do garimpo com o narcotráfico. E com ela, a invasão e os ataques nas terras indígenas, não apenas a dos Yanomami.
Em 2013, ocorreram transferências prisionais de membros do Primeiro Comando da Capital (PCC) para prisões de Roraima, o que teria oportunizado a coalisão de dois mercados: o de drogas e o de garimpo ilegais.
As relações entre os fugitivos das prisões em Roraima e os garimpos são conhecidas. O professor conta que é comum que, em caso de fuga, os presidiários se escondam nos garimpos, já que o acesso a esses é, propositalmente, difícil.
Em 2014, a crise econômica e política na Venezuela se intensificou. O que, por sua vez, produziu uma crise humanitária na fronteira com Roraima, pois adentrou o país um grande contingente de venezuelanos socialmente vulnerabilizados.
Muitos deles foram facilmente atraídos e cooptados para essa atividade. Nesse período, começaram relatos do aumento da garimpagem na Terra Indígena Yanomami.
Chagas observa que os garimpeiros possuem alta mobilidade entre as diferentes frentes de mineração ilegal no Brasil, Venezuela, Guiana e Suriname. Até a crise venezuelana, havia muitos garimpeiros brasileiros atuando do outro lado da fronteira.
As frentes de garimpagem possuem redes de portos e aeroportos entre esses países que são oportunos para o tráfico. Por sua vez, o tráfico possui uma dominância violenta que interessa ao garimpo.
Nesse contexto, criaram-se núcleos do narcotráfico na Terra Indígena Yanomami. Chagas avalia que a situação de invasão e ataques aos Yanomami é fruto da guerra que hegemoniza o PCC em Roraima. Essa organização já seria dominante no mercado do varejo de drogas em Roraima.
Antes, no garimpo comum, ele aponta que se utilizavam armas de calibre menor. Mas o armamento utilizado nos ataques à região da aldeia Palimi u, no território yanomami, no ano de 2022, são de padrão superior.
O narcotráfico utilizou fuzis e bombas para atacar os indígenas. As armas e o mercúrio que chegam em Roraima estariam entrando pela Guiana, fronteira ainda pouco observada.
No levantamento feito pelo professor em 2019, nenhum garimpeiro relatava presença do narcotráfico. Em 2022, todos com quem falou a confirmaram.
Chagas relata ainda que, empurrados pela guerra com o PCC, o Comando Vermelho passou a atuar com traficantes venezuelanos da organização Trem de Aragua, no tráfico de maconha do tipo skank.
Para o professor, “a gestão criminosa e a dominação armada mudou o garimpo”.
Ele completa que a estrutura do que vem sendo chamado de narcogarimpo não está apenas na extração dentro das florestas, está também na logística dentro das cidades.
Na periferia de Boa Vista, ele observa que os jovens encontram no PCC um horizonte de poder, prestigio e enriquecimento que não encontram de outra forma na sociedade. Existe cooptação, mas, ao mesmo tempo, ser “irmão do PCC” é atrativo para eles.
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Os garimpeiros não vão embora
Rafael Alves, fotógrafo que fez a cobertura da tragédia yanomami, também participou do evento. Ele falou sobre as dificuldades de acompanhar pautas como essa. Para Alves, há interesse de profissionais como ele, mas nem sempre há adesão da empresa para qual se trabalha.
Ele falou ainda que, em situações como a da crise humanitária dos Yanomami, é comum que os agentes locais facilitem a cobertura jornalística de organismos de fora da região.
Isso leva a pouco ou nenhum comprometimento das empresas que atuam fora em continuar a cobertura jornalística após a comoção inicial que causa na sociedade. Além disso, perpetua-se o olhar estrangeiro sobre a região.
Ele avalia que, de modo geral, a cobertura jornalística sobre a Amazônia é ruim, pois a apresentação da diversidade social se faz de modo generalizado.
Não foi diferente para ele na cobertura do caso dos Yanomami. O fotógrafo relatou que mesmo realizando os procedimentos para a autorização de sua entrada na terra indígena, não conseguiu.
Ao contrário de veículos de outras partes do país que o conseguiram, mesmo chegando depois dos veículos de comunicação locais.
Assim, a solução que encontrou foi acompanhar a saída dos garimpeiros. Nesse empreendimento, ele testemunhou dezenas de famílias saindo das áreas invadidas.
Ele ressalta que a operação policial provocou a corrida dos donos de garimpo para a retirada dos equipamentos, mas os garimpeiros que atuam na extração ficaram abandonados.
O pai de uma das famílias que encontrou lhe disse que nasceu e cresceu no garimpo, que só sabe garimpar, era analfabeto e não sabia para onde iriam.
Ele observou que, no caminho até a terra indígena, há uma cadeia de serviços terceirizados que realiza, por exemplo, fornecimento de internet e transporte em áreas sem qualquer infraestrutura.
A situação de precariedade se mantém, justamente, para não facilitar o acesso da polícia e de jornalistas. O local só é acessado em carros adaptados para tal.
Durante todo o percurso nas estradas, Rafael Alves pôde fotografar a pichação das iniciais da organização criminosa
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PCC nas placas de sinalização
A pesquisa do professor Rodrigo Chagas estima que atuavam no território yanomami cerca de 25 mil garimpeiros. Aproximadamente metade desse contingente, teria ido rumo a outras frentes de garimpo ilegal, como as de Itaituba, no Pará, e de áreas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
A outra metade se divide entre os que continuam na região trabalhando à noite, a fim de driblar a fiscalização; os que se esconderam na região transfronteiriça com a Venezuela e a Guiana; e os que estão aguardando nas cidades de Roraima para retornar aos antigos postos.
Para o professor, esse é um problema difícil de resolver. Seria necessário desconstruir a mentalidade garimpeira que predomina no estado. Isso só será possível a longo prazo, por meio da implementação de um outro projeto de estado para Roraima.
A curto prazo, ele afirma que é necessário lidar com os garimpeiros, encontrar alternativas para eles e não esperar que desistam ou desapareçam.
*A autora é antropóloga.
Foto: Prefeitura de Boa Vista/reprodução