O lugar do caboclo no Festival Folclórico de Parintins
Neste artigo, a antropóloga Dassuem Nogueira aponta que o lugar do caboclo no espetáculo bem que merecia uma revisão de status.

Por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 22/07/2025 às 10:13 | Atualizado em: 22/07/2025 às 10:13
O Festival Folclórico de Parintins é a grande expressão cultural do norte do país. Os espetáculos de Caprichoso e Garantido trazem a novidade de um universo amazônico indígena e caboclo pouco conhecido para além dos estereótipos nacionalmente evocados quando se pensa nessas coletividades.
Como expressão do pensamento de um tempo, o festival vem se transformando e se alinhando, sobretudo, aos discursos de movimentos políticos organizados de povos indígenas e coletivos negros, tentando consolidar-se como aliados e vitrines de suas causas.
Mas, há resquícios do tipo de pensamento social que estabeleceu o formato do festival como hoje o conhecemos: a miscigenação e o colonialismo.
Desse modo, há ideias e nomenclaturas que, sutilmente, mantem um discurso colonial produzido de fora para dentro da Amazônia.
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O caboclo
O caboclo é uma categoria sociológica do escopo da teoria da miscigenação, segundo a qual a nação brasileira seria fruto de uma mistura racial.
O caboclo seria o resultado da miscigenação do branco com o indígena.
Porém, antes de ser uma categoria sociológica, o caboclo é uma categoria histórica bem anterior ao da formação social do povo brasileiro, cuja discussão ocorre no começo do século 20.
Caboclo foi o termo utilizado pela coroa portuguesa para denominar indígenas de diferentes povos cuja etnia não era conhecida, especialmente, no norte e nordeste do Brasil.
A partir do processo de independência, houve a necessidade de formular uma identidade nacional e identidades regionais eficientes em apaziguar forças políticas e de guerra, por exemplo, como a dos tupinambás e quilombolas do Nordeste, que participaram da revolução popular de independência na Bahia.
Desse modo, caboclo deixou de ser uma categoria generalizante de diferentes povos indígenas e passou a ser uma categoria para a mistura racial do branco com indígena – anteriormente, a categoria utilizada para definir tal mistura era mameluco.
Portanto, quando falamos em caboclos, estamos falando em um conjunto de populações indígenas que foram caboclizadas, transformadas em algo genérico (de um ponto de vista colonial).
Contudo, embora o processo colonial tenha conseguido apagar o pertencimento étnico dessas populações, não apagou toda sua ontologia.
E, aqui, voltamos ao boi-bumbá de Parintins. Pois, o lugar do caboclo no espetáculo bem que merecia uma revisão de status.
Lenda amazônica
O item lenda amazônica nasceu para dar espaço ao que seria o universo mítico do caboclo amazônico.
Nele são apresentados iara, mapinguari, matinta pereira, boto, visagens, ingeramentos, e demais expressões da cosmologia amazônica.
O dicionário Aurélio define o termo lenda como “uma narrativa de caráter fantástico ou tradicional, transmitida oralmente ou por escrito, que mistura fatos reais com elementos imaginários ou sobrenaturais”.
Todavía, tais narrativas são a forma como caboclos percebem e elaboram o universo. Não são simples narrativas poéticas sobre fenômenos naturais que não sabem explicar.
Ao contrário, são teoria, pensamento, cosmologia e poética de um universo que sabemos explicar e nos relacionar porque dele fazemos parte.
Afinal, para quem, os encantados do fundo de um porto não existem e não merecem respeito? Para os caboclos da Amazônia, eles são realidade.
Figura típica regional
A figura típica regional segue na mesma linha de argumentação.
Diferentemente de lenda amazônica, esse é um item destinado ao universo concreto do caboclo.
Nele são exibidos, comumente, ofícios dos caboclos do interior e da cidade, como artesãos, pescadores, tacacazeiras.
Desse modo, expressam uma paisagem cultural regional.
Entretanto, o termo “figura típica regional” evoca o exótico, pois se posiciona em uma perspectiva de fora, nos tornando exóticos para nós mesmos.
Nos dois casos, seria o momento de revisar tais terminologias e, por fim, qual mensagem o boi-bumbá quer passar dos caboclos da Amazônia, a exemplo do que foi feito a partir da mudança do termo tribo para povos indígenas, no item 13.
O universo caboclo não merece ser mantido na esfera do lendário ou do exótico. Não se chama de lenda o modo como povos indígenas etnicamente marcados percebem a vida no fundo do rio ou na floresta. Por que o dos caboclos seria?
*A autora é doutora em antropologia.
Foto: divulgação