O jogo de xadrez dos bumbás

Dada as profundezas da rivalidade entre os bumbás, um tenta se antecipar ao que imagina que o outro vai apresentar para fazer melhor

Mariane Veiga, por Dassuem Nogueira

Publicado em: 11/05/2024 às 16:14 | Atualizado em: 11/05/2024 às 16:24

Notavelmente, o festival de Parintins é feito para os jurados. Afinal, é a tinta preta de suas canetas que revelará a cor campeã.

Dada as profundezas da rivalidade entre os bumbás, um tenta se antecipar ao que imagina que o outro vai apresentar para fazer melhor.

E, de preferência, primeiro.

No empenho de surpreender o adversário, uma questão recorrente é a repetição de “jogadas” no mesmo ano, o que faz parecer que um boi precisa fazer, exatamente, o que o outro faz.

Todo espectador do festival já notou que, muitas vezes, os espetáculos de um boi se assemelham ao do outro em conteúdo.

Por exemplo: um momento especial para exaltar as mulheres em cada lado, a participação especial de uma liderança indígena em ambos ou, do mesmo modo, uma homenagem a Nossa Senhora do Carmo em azul e em vermelho.

Momentos nos quais as torcidas se acusam, mutualmente, de inveja. Mas o objetivo não é invejar, é não ficar para trás aos olhos dos jurados.

Tal como em um jogo de xadrez, só é possível neutralizar uma jogada com outra feita por uma peça de igual ou maior peso.

Porém, no afã que um boi tem de superar o outro, perde-se em comunicar ao público uma mensagem artística clara. E, por tabela, aos jurados. Pois, lembrem-se que a maioria deles é debutante no festival de Parintins.

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Jogadas campeãs ao longo das décadas

Ao longo das décadas, é possível identificar saltos artísticos que estabelecem padrões vitoriosos.

O boi Caprichoso, na década de 90, especializou-se na construção e execução de estruturas alegóricas grandiosas.

Estabeleceu ainda um padrão coreográfico de excelência. Dois elementos de grande poder estético e fáceis de perceber. Acumulou seis títulos nessa década. Entre eles, um tricampeonato.

Após o ano 2000, o boi Garantido passou a desenvolver temas relacionados à preservação da Amazônia, uma mensagem que se comunica facilmente com o mundo dentro e fora da ilha, de onde vêm os jurados.

Passou ainda a realizar o momento que denominou de “celebração folclórica”, em que exalta a si mesmo e a sua história, contextualizando espectadores e jurados.

Nessa primeira década do novo século, o boi da baixa da Xanda conquistou sete títulos, dos quais um tetra e um tricampeonato. Lembrando que no ano 2000 houve um empate inédito e único até então.

Os anos até 2010 parecem refletir uma transição. De 2009 a 2016, o boi Garantido deixa as temáticas ambientais e passa a desenvolver temas conceituais. Tais como Emoção (2009), Paixão (2010), Miscigenação (2011), Tradição (2012), Fé (2014), Vida (2015), Celebração (2016).

Nesses oito anos, a agremiação vermelha e branca tem cinco campeonatos.

Temas como esses possibilitam uma margem maior de manobras em relação ao seu adversário.

Contudo, podem deixar os espetáculos sem um fio condutor. Pois, não fica clara a conexão entre as partes, entre as celebrações folclóricas e os rituais, por exemplo. Não contam histórias inteiras, mas partes independentes entre si.

De 2017 a 2023, o boi Caprichoso tem apresentado temas autorais complexos. Tais como A poética do imaginário caboclo (2017), Sabedoria popular: uma revolução ancestral (2018), Um canto de esperança para a pátria brasilis (2019), Terra, nosso corpo, nosso espírito (2021), Amazônia: nossa luta em poesia (2022), O brado do povo guerreiro (2023).

Nesses sete anos, não houve disputa em 2020 e 2021 em função da pandemia de covid-19. Portanto, são cinco festivais válidos. Nesses, o boi Caprichoso acumula quatro títulos, dos quais dois bicampeonatos, contra um do boi Garantido.

Atenta somente à leitura dos temas a partir de 2017, penso que a jogada campeã do boi azul é a comunicação conceitual que estabelece com os jurados. Porquanto lança para eles conceitos familiares do seu universo acadêmico.

Contudo, se a leitura pode ser facilitada à comissão julgadora, ela é dificultada aos espectadores distantes desse universo.

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O primeiro movimento: tema e álbum

A história contada a partir dos padrões de espetáculo dos bois mostra que para superar um padrão vitorioso de seu oponente, o boi precisa se reinventar, dar um novo salto estético, conceitual ou artístico.

Podemos dizer que o tabuleiro do jogo de arena dos bois é feito por seus álbuns. A partir do álbum é possível fazer uma leitura do que cada boi preparou para cada peça, seus itens.

Em 2024, o boi Caprichoso segue o padrão dos últimos anos. Desenvolverá um tema autoral, uma tese que se chama Cultura, o triunfo do povo.

Já o boi Garantido retoma o padrão conceitual campeão a partir de 2010. A ver, por exemplo, que o andamento da batucada, no álbum “Segredos do coração”, diminuiu sensivelmente.

Melodicamente, voltou ao padrão musical daqueles anos.

“Segredos do coração” é um tema que possui uma margem grande de manobras, pois é feito de partes independentes entre si. Não é possível identificar pelo álbum as combinações a serem feitas.

Não há, por exemplo, uma toada que explique o tema. Nem espectadores nem jurados tem, na largada, entendimento do que será feito.

Do lado azul, o boi Caprichoso traz uma mensagem clara. Em termos acadêmicos, faz uma releitura decolonial de si mesmo. Traduzindo: reconta a sua história trazendo à tona partes antes, convenientemente, apagadas. Tal como a ancestralidade negra que, agora, reclama para si.

Os álbuns-tema dos bois Caprichoso e Garantido têm propostas muito diferentes.

O boi azul possui um álbum com toadas que servem o propósito de trilhas musicais para as apresentações.

O boi vermelho, a julgar pelo álbum e pelo padrão do início da década a partir de 2010, aposta na poesia e na emoção.

Não se estabelecem entre eles comparações possíveis.

De modo tal que, mais do que nunca, a competição está na mão dos jurados.

Qual proposta estética cada um irá comprar? A que entenderão ou a que tocará sua emoção?

Arte: Gilmal