O galeroso como adjetivo cultural

Dassuem Nogueira traz uma abordagem sobre as galeras de Manaus. Leia no artigo da antropóloga

Ednilson Maciel, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 29/05/2025 às 17:52 | Atualizado em: 29/05/2025 às 17:52

As galeras eram grupos de jovens das periferias de Manaus que surgiram por volta de 1985 e findaram, aproximadamente, no início dos anos 2000.

A falta de políticas de lazer, a influência da cultura estadunidense, a necessidade de se sentirem integrados a algum coletivo, são alguns dos fatores que propiciaram o crescimento das galeras em Manaus.

A sua existência foi combatida na cidade pelo Estado, sociedade e imprensa, em razão da violência de suas ações.

Contudo, passados quarenta anos, “galeroso” tornou-se um adjetivo cultural próprio de Manaus, expressando a originalidade cultural nascida na periferia da cidade que, por si só, é a periferia do mundo.

A periferia manauara

O distrito industrial da ZFM (Zona Franca de Manaus), inaugurado em 1972, surgiu como uma promessa de superação da estagnação econômica experimentada após o declínio da indústria da borracha.

Milhares de migrantes de todo o interior do estado chegaram a Manaus seduzidos pela promessa de serem convertidos em trabalhadores das fábricas.

Os migrantes passaram a ocupar novos espaços, formando novos bairros para além da região fundacional da cidade, no bairro centro e adjacências.

O que aconteceu de modo desordenado, durante toda a década de 80, sobretudo, em direção às zonas leste e oeste da capital.

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Os selvagens da noite

Os filmes que eram exibidos na televisão eram umas das poucas opções de lazer gratuitas para os jovens das periferias de Manaus.

Uma das inspirações para o surgimento das galeras foi o filme “The Warriors”, traduzido para o português como “Selvagens da noite” (1979).

Esse, e outros, mostravam gangues juvenis disputando territórios em grandes cidades estadunidenses, com líderes e apelidos que identificavam seus membros.

Em Manaus, surgiu a “Selvagens da Compensa”, “Anjos da noite” e a “Pitiuá”, que chegaram a reunir cerca de 50 membros cada.

O dance music

O dance music era o pop da cultura estadunidense na década de 80. As danceterias no centro de Manaus eram as únicas opções de lazer desse tipo na cidade, atraindo os jovens.

Bancrévea Clube, Cheik Club, Crocodilo’s Dance, Spectron Disco, localizadas no centro da cidade, com ingressos acessíveis aos jovens pobres das periferias eram disputadas pelas galeras, existindo espaços demarcados e proibidos para cada uma.

Os embates se davam também em torno de exibições de dança, entre os grupos que dominavam as técnicas e passos da moda, especialmente, o break nascido na cultura hip hop.

Contudo, essas demonstrações de habilidades artísticas, rapidamente, podiam tornar-se confrontos físicos.

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Violência

Os galerosos chegavam a cobrar pedágios em frente às danceterias para obter dinheiro para comprar álcool e outras drogas. E faziam o mesmo em certos espaços de seus bairros.

Cometiam atos de violência e vandalismo, confrontos com armas caseiras, facas e terçados e paus. Também furtos, roubos e violência sexual contra membros de suas próprias galeras.

A violência das galeras era amplamente acompanhada pela imprensa local durante toda a sua existência.

E as galeras passaram a ser um problema de segurança pública.

A repressão

No fim da década de 80, o Brasil experimentava a redemocratização do país, contudo, havia resquícios de práticas da ditadura militar.

Há relatos entre ex-galerosos e da imprensa da época que mostram a prática de tortura e execuções de galerosos.

O fim da galera “Selvagens da Compensa” é atribuído à ação de grupos de extermínio ligados a policiais.

A repressão policial foi intensa, desde o início. Na década de 90, houve aumento significativo de vagas em reformatórios para jovens na capital. E de prisões para os maiores de 18 anos.

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O fim das galeras

Na segunda metade da década de 90, surgiram projetos sociais que tinham como objetivo dar opções de lazer e perspectiva de futuro aos jovens de periferia.

É dessa época o projeto Orquestra Jovem Floresta Amazônica, que ofertava bolsas para os integrantes interessados em tocar instrumentos clássicos, e o projeto Galeras Amparadas, que, entre outros, encaminhava jovens ao mercado de trabalho.

Um fator importante para o fim das galeras foi o fechamento das danceterias do centro da cidade.

A última a fechar foi a Spectron Disco, em 2000.

Adjetivo

Há 25 anos, aproximadamente, desde que deixaram de existir, dando espaço a outros problemas de segurança pública, as galeras deixaram uma marca na sociedade manauara.

Galeroso deixou de significar apenas um jovem violento e passou a ser ressignificado como um adjetivo que simboliza a originalidade cultural que pulsa nas periferias de Manaus.

O dance music deu espaço a outros gêneros musicais. As casas de forró passaram a ser pontos de encontro e diversão da juventude da periferia manauara nos anos 2000.

E o forró produzido e consumido em Manaus ganhou o adjetivo, tornando-se o “forró de galeroso”, expressando um estilo musical e um modo de dançar únicos.

Além disso, o modo de falar e as gírias do jovem da periferia também adquiriram esse adjetivo.

O galeroso

Durante todo esse tempo, os jovens das periferias foram estigmatizados por esse adjetivo que demarcariam o local de origem e um destino: a marginalidade.

Contudo, a violência e o poder mobilizador e aglutinador das galeras foram positivados entre os jovens da periferia manauara na atualidade.

E galeroso tornou-se sinônimo de uma existência que afronta os padrões estabelecidos da língua portuguesa e da cultura erudita, comumente, valorizados entre classes economicamente favorecidas.

O galeroso é um adjetivo que afronta.

Fonte: Marcos Roberto Russo de Oliveira, “Amizades, porradas, facadas e caseiras fumegantes: uma história das galeras de Manaus” (1985-2000), dissertação: PPGH/UFAM, 2017.

*A autora é antropóloga.

Foto: reprodução/vídeo