“O dono da lancha”

Prostituição na pós-modernidade é o tema do artigo de Aldenor Ferreira, tendo a música de Tierry, do DVD "O pai das crianças" como pano de fundo

Imagens de Fotos Públicas para artigo de Aldenor Ferreira

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 20/11/2021 às 06:14 | Atualizado em: 20/11/2021 às 06:15

Aldenor Ferreira*

Na música “Cabeça branca”, do cantor e compositor Tierry, o eu lírico retrata a vida de um experiente empresário de sucesso, “o dono da lancha”, que, aos finais de semana, compra companhia e sexo.  

E compra por quê? Porque são vistos por ele como mercadorias.

Pitágoras, filósofo e matemático grego, certa vez disse: “tudo é número”. Parafraseando-o, digo: no capitalismo, tudo é mercadoria.

Segundo Marx, “o elemento básico da economia capitalista é a mercadoria, esta, por sua vez, possui algumas características, dentre as quais estão o valor de uso e o valor de troca”.

O filósofo alemão afirma também que “o valor de uso de uma mercadoria é o seu aspecto material, ou seja, sua capacidade para satisfazer uma necessidade humana”. Isso implica dizer que esse valor está estritamente ligado ao conteúdo de uma dada mercadoria.

Marx ainda define que, por sua vez, o valor de troca é “a capacidade que cada mercadoria possui para ser trocada por outra mercadoria”. Nesse processo, como sabemos, há um elemento que faz a mediação entre as mercadorias: o dinheiro.  

A música de Tierry permite, então, a análise do processo de troca mediada pelo dinheiro, no caso, a venda e a compra de serviços de acompanhante, uma modalidade de prostituição cada vez mais utilizada.

O eu lírico da canção retrata a vida de um empresário de sucesso que, no final de semana, procura relaxar na companhia de belas mulheres. Para isso, ele “banca um churrasco em alto mar”, ou seja, acaba pagando para poder desfrutar de sua companhia.

Tem-se, portanto, um tipo de prostituição que não está circunscrita ao espaço físico de um prostíbulo, à rua, ou mesmo ao ato sexual. Trata-se de uma modalidade que se apresenta como um serviço – no caso, o serviço de acompanhante.

Nessa modalidade de prostituição, não é o cliente que vai até o local do encontro, mas é a acompanhante que vem ao encontro dele e que fica ao seu lado em vários momentos.

Na canção, isso é ilustrado em um passeio de lancha.

Sabemos que a prostituição não é algo novo na sociedade, que ela existe desde tempos imemoriais e que está baseada em valores culturais, sociais e econômicos. O sexo, como toda mercadoria, está submetido à mesma lógica do valor de uso e do valor de troca. Ou seja, a venda e a compra de companhia e de sexo é um negócio tipicamente capitalista.

Nesse sentido, uma mulher, um homem ou mesmo quem não se identifica com nenhum gênero, desde que atenda aos padrões de beleza exigidos pelas diversas modalidades e níveis de prostituição, pode fazer uso do seu corpo da forma que melhor lhe propiciar ganhos financeiros.

Consciente de seus atributos e dotes, ele/ela/elxs podem se inserir no mercado do sexo por livre e espontânea vontade, apenas tendo como foco o ganho financeiro. Portanto, não cabe nessa temática qualquer análise baseada em valor moral, ético, religioso etc., uma vez que, como dito, a prostituição é um negócio tipicamente capitalista.

Em tempo, destaca-se ainda que há, infelizmente, o aliciamento de menores, bem como o tráfico de pessoas que acabam se tornando escravas sexuais, mas não é sobre isso que falo na coluna de hoje.

Ser acompanhante é prestar um serviço que, como em todo negócio, se submete às leis da oferta e da procura, leis essas que constituem o mercado e que são alimentadas por toda sorte de gente ou de consumidor, como o “cabeça branca”, empresário dono da lancha citado na canção.

Isso implica dizer que, para além de uma necessidade financeira, que em muitos casos é verdadeira, de igual forma, em muitos casos, essa atividade é simplesmente uma escolha em um “livre mercado”.

Do ponto de vista da sociologia weberiana, trata-se de uma ação social racional que tem como objetivo determinado fim, no caso, a obtenção de ganhos financeiros imediatos, no que se refere a quem presta esses serviços.

No universo da música popular brasileira, os acontecimentos da vida cotidiana são narrados com muita fidelidade e criatividade. Nesse sentido, a música de Tierry descreve um fato da vida cotidiana, em que se tem, de um lado, alguém precisando de um serviço e, de outro, alguém o oferecendo em troca de dinheiro.

Nada é mais capitalista do que isso.

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Foto: Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas

*Sociólogo