O Brasil, segundo a sinhazinha da fazenda

A sinhazinha pode contar as histórias de moças e mulheres importantes para a história dos próprios bois Caprichoso e Garantido

Ednilson Maciel, Por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 23/05/2024 às 18:05 | Atualizado em: 23/05/2024 às 18:52

O Festival Folclórico de Parintins é um retrato das questões de seu tempo. Podemos contar a história do último século a partir dele. E até de suas partes, como a partir de um item.

O item sinhazinha da fazenda, por exemplo, é bastante emblemático de como o discurso sobre a sociedade brasileira ressoou na cultura parintinense nos últimos 50 anos.

Ao contrário do que se afirma, a sinhazinha da fazenda não é uma personagem do auto do boi parintinense. Ela foi, oportunamente, incorporada a ele.

O seu nascimento como item nos leva à década de 70, do momento no qual o boi-bumbá de Parintins ainda construía seu formato atual.

Nesse tempo, as apresentações experimentavam muitos elementos emprestados dos desfiles das escolas de samba do carnaval carioca. Um deles foi a estética das portas-bandeiras, com seus longos e portentosos vestidos.

Assim, havia um momento em que se apresentava um conjunto de moças vestidas com figurino semelhante aos da porta-bandeira.

Dentre elas, a rainha do artesanato, a rainha do folclore, a porta-estandarte e a rainha da fazenda. Esta, posteriormente, converteu-se em sinhazinha. A do artesanato não sobreviveu ao tempo.

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A identidade própria

Mas, como a pavulagem é o tempero da arte parintinense, o empréstimo de uma estética importada do carnaval não durou muito.

As rainhas do boi logo foram ressignificadas em algo autêntico.

A partir da inauguração do bumbódromo, em 1988, rainha do folclore e porta-estandarte, gradativamente, foram vinculadas à estética indígena.

A partir de 1993, a rainha da fazenda se converte em sinhazinha da fazenda. Com o item, nasce o seu lugar no auto do boi.

Ela passa a representar a filha do amo do boi e cria-se uma narrativa em torno dela.

Para fazer jus ao seu novo significado, a sua indumentária corresponde ao final do período colonial, o tempo mítico do auto do boi parintinense.

Garantido e Caprichoso passam a ser os brinquedos preferidos de suas sinhazinhas.

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Catalisador do tempo

O ano de 1988, da inauguração do bumbódromo, também é o da promulgação da atual Constituição do Brasil.

Naquele momento, muito se falou sobre a formação da cultura brasileira. E do que, na época, se entendia como suas matrizes culturais: a portuguesa, a negra e a indígena.

Nesse sentido, ganha novo fôlego o livro de Sérgio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque) que se chama “Raízes do Brasil”, de 1936.

O autor defende a herança portuguesa para a cultura brasileira.

Não por acaso, “Raízes de um povo” é o nome de uma toada que Chico da Silva fez para o boi Caprichoso em 1990.

Ela começa assim: “É na dança do negro, do branco e do índio, que estão as raízes de um povo…”.

O boi-bumbá, como catalisador das questões de seu tempo, passa a incorporar em seu formato e em suas apresentações o discurso da miscigenação cultural.

Assim, literalmente, criam-se itens de destaque para a cultura branca e indígena, tidas como as matrizes da cultura cabocla.

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O embraquecimento das sinhazinhas

A primeira sinhazinha do boi-bumbá Caprichoso, Karina Cid, é uma moça de cabelos negros cacheados e pele escura.

Ela foi rainha do folclore em 1992, quando ainda se apresentavam com longos vestidos.

Em 1993, Karina assume a personagem recém-criada sinhazinha da fazenda.

A primeira sinhazinha do boi bumbá Garantido é Tame Novo, uma moça de pele clara e cabelos negros cacheados.

Ela foi rainha da fazenda em 1992 e, a partir de 1993, passou a ser sinhazinha.

Sua substituta foi Albia Neves, moça de pele morena e cabelos negros cacheados. Foi sinhazinha de 1996 a 2000.

A partir de 1999 as sinhazinhas de ambos os bois iniciam um processo de embranquecimento, pois é quando o boi-bumbá de Parintins assume o discurso de que amo do boi e sua filha são brancos. Embora, até o momento, o único amo branco do boi seja João Paulo Farias, que defende o item pelo Garantido desde 2020.

Em 1999, Karina Cid é substituída por Jeane Benoliel, de pele e cabelos claros. Esta imprime à sinhazinha um bailado menos polido.

Em 2001, Vanessa Gonçalves, filha do então prefeito Éneas Gonçalves, assume o item no Garantido. Ela deu à sinhazinha do Garantido uma personalidade extrovertida, divertida e teatral.
Mérito da personalidade forte de Vanessa, mas também do trabalho de aprimoramento cênico do teatrólogo Chico Cardoso, no boi vermelho.

Em 2007, as sinhazinhas enloirecem. No Caprichoso, é o ano de estreia de Thainá Valente e em 2008, Ana Paula Ianuzzi assume o item no boi-bumbá Garantido.

A partir da entrada de Ana Luisa Faria, em 2013, a sinhazinha da fazenda ganha um novo predicado.

Bailarina clássica, ela imprime ao item os delicados movimentos de braço do balé. A sinhazinha então ganha traços de erudição.

Desafios para um novo tempo

Atualmente, a sociedade brasileira passa por um novo momento.

Presenciamos um processo de reconhecimento de nossa pluralidade étnica, social e cultural.

Assim, nos despedimos do entendimento de que o povo brasileiro é fruto de uma miscigenação cultural. Passamos a compreender que somos muitos Brasis.

Assim, a sinhazinha da fazenda como lugar da exaltação da matriz branca da cultura cabocla começa a perder o sentido. Ela carece de novos significados.

Ou de recuperar os antigos. Pois o auto do boi parintinense pode ser ancorado na várzea do rio Amazonas.

A sinhazinha pode contar as histórias de moças e mulheres importantes para a história dos próprios bois.

Moças, mulheres e crianças que não são brancas nem bailarinas clássicas cujas contribuições ainda não são conhecidas fora de suas comunidades.

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*A autora é antropóloga

Fotos: reprodução/redes sociais