Nunca escravizei ninguém
"Na alma, no caráter, no pensamento e no comportamento, a elite escravocrata brasileira não apenas permanece atuando, como também elegeu um importante representante"

Neuton Correa, por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 15/05/2021 às 06:32 | Atualizado em: 15/05/2021 às 10:06
Na quinta-feira, dia 13, completaram-se 133 anos da assinatura da Lei nº. 3.353, a Lei Áurea.
O famoso 13 de maio nomeia ruas e avenidas Brasil a fora. Entretanto, tornou-se famosa nos últimos anos a célebre frase: “eu nunca escravizei ninguém”.
Dita pelo então candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro, em um programa de televisão de grande audiência, essa frase não só demonstra desconhecimento dos processos históricos, como também é a reverberação de todo o pensamento e discurso de uma classe.
Uma parte da sociedade brasileira, composta por uma elite branca e abastada, sendo sua maioria herdeira do escravagismo, pensa exatamente assim. Ou seja, nada mudou, o(a) preto(a) continua “não sendo gente” para esse estrato social.
O sadismo dessa elite, do qual Bolsonaro é o porta-voz, vem de longa data. Eles nunca tiveram problema moral nenhum em traficar seres humanos pretos, em comprá-los no mercado examinado seus dentes, como se examinassem dentes de cavalos, e/ou de exigir favores do Estado – como o fizeram com o pedido fracassado de indenização por conta da assinatura da Lei Áurea.
O raciocínio naquele momento era simples: os escravos eram propriedades, logo, seria inadmissível sua “perda” sem nenhum tipo de indenização.
Entretanto, esquecia-se que esses senhores obtiveram, muito mais do que essa indenização, “indiretamente, através do financiamento de uma política oficial de imigração e de proteção à exportação, que resolvia seus problemas de mão-de-obra e de comercialização do café”, como afirma o sociólogo Florestan Fernandes no texto O centenário da antiabolição – 1988. As leis abolicionistas, como a Lei nº. 2.040, de 28 de setembro de 1881, conhecida como a lei do ventre livre, e a Lei n.º 3.270, 28 de setembro de 1885, ou lei do sexagenário, foram duramente criticadas pelos defensores do escravagismo, apesar de, como escreveu Fernandes, serem “a expressão do liberalismo e do humanitarismo radicais dos brancos, com frequência nascidos na Casa Grande ou aliados dos interesses senhoriais […]”.
Ou seja, essas leis não atuavam em prol da libertação dos escravizados, eram medidas de contenção dos humores da época.
Filhos de escravas poderiam ser libertos aos oito anos – sem nenhuma política de cuidado, daí surgem as primeiras casas de detenção de menores no Brasil – ou aos 21 anos, sem nenhuma medida reparatória. Já a lei dos sexagenários obrigava o escravo a trabalhar por mais três anos caso optasse pela alforria, também sem direitos, dinheiro ou políticas de acolhimento.
Recorrendo novamente à Florestan Fernandes, é “imperioso o desmascaramento da história – a começar pelo 13 de maio e pela realidade concreta de uma República que só é democrática para os de cima”. Principalmente considerando que “foi uma revolução social dos brancos, pelos brancos e para os brancos dos estratos sociais dominantes”.
A conclusão a que chego, analisando os fatos históricos relacionados à Lei Áurea e às demais leis abolicionistas brasileiras, analisando o devir dessa longa tradição escravocrata é que, na alma, no caráter, no pensamento e no comportamento, a elite escravocrata brasileira não apenas permanece atuando, como também elegeu um importante representante, colocando-o no posto máximo da República.
Os herdeiros dessa elite, no fundo, desejam avidamente o retorno desse sistema ao Brasil, vide a Reforma Trabalhista e da Previdência, que colocou milhões de trabalhadores brasileiros em condições de trabalho precarizado, subcontratado, terceirizado, sem nenhum tipo de cobertura previdenciária no presente e nem no futuro.
A frase “eu nunca escravizei ninguém”, não é apenas desconhecimento dos processos históricos ligados à escravidão, é também desfaçatez. É um recurso retórico negacionista para encobrir um passado de sangue. É um recurso discursivo para não assumir, como ente político, os desafios do tempo presente ligados à temática racial e a seus desdobramentos em nosso país, tarefa que cabe, acima de tudo, ao Estado.
A realidade é que, passados 133 anos da promulgação da Lei Áurea, os descendentes de pretos continuam sendo “escravizados” e os descendentes dos brancos continuam sendo “senhores de escravos”. Assim, a assertiva “eu nunca escravizei ninguém” dependendo de quem a pronuncia, leva à pergunta: será?
*O autor é sociólogo
Arte: Alex Fidelix/BNC Amazonas