Natal feliz é Natal sem fome
"O Natal, a festa cristã, é uma fraude"

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 24/12/2022 às 00:01 | Atualizado em: 24/12/2022 às 08:33
Hoje, próximo à meia-noite, milhões de famílias se sentarão ao redor de uma mesa farta, com todo tipo de comida e bebida que o paladar desejou para a ocasião e que o recurso financeiro possibilitou adquirir. É a tradicional ceia de Natal, o ápice das celebrações cristãs no mundo ocidental.
A cristandade celebra o nascimento de Jesus. Para muitos, é um acontecimento de dimensões cósmicas e transcendentais. Para outros, um fato histórico questionável, visto que essa data não corresponde exatamente ao nascimento do Messias, muito menos à festa que celebrou o evento, passando ao largo da cultura judaica, de onde procede Cristo.
Vou deixar essas questões históricas e teológicas de lado hoje, pois quero me ater ao lado sombrio do Natal. O lado da fome.
Hoje, na ceia de Natal, colocando por baixo, ao menos 20 milhões de famílias no Brasil não terão o que comer. Como aceitar esse flagelo em um país que é o campeão mundial de produção de alimentos e, também, de maioria cristã?
A resposta para essa questão, ao menos para mim, é simples. Não tem como aceitar. É um contrassenso, um paradoxo, uma crueldade, uma desumanidade. Todavia, para 20 milhões de famílias brasileiras não haverá mesa farta, não haverá risos, abraços, troca de presentes, reencontros e beijos.
Paradoxalmente, a festa para celebrar o nascimento do menino que nasceu em um curral – a palavra manjedoura é um eufemismo –, em condições extremamente desfavoráveis, se tornou a antítese daquilo que é a razão da sua existência.
O Natal, nos parâmetros de hoje, de uma sociedade capitalista, egoísta e materialista, não é uma festa cristã, mas, sim, uma festa de Baco, deus romano do vinho, da fertilidade e da folia. Se preferirmos a mitologia grega ao invés da romana, podemos chamar também de festa do deus Dionísio.
A ceia dos famintos, dos miseráveis, dos despossuídos e excluídos, com sorte, ocorre na manhã do domingo. Talvez nesse dia eles consigam restos de alimentos nos tambores de lixo em frente às casas dos cristãos. Mas devem, ainda assim, tomar cuidado, pois a maioria dessa “gente de bem” não gosta que revirem seus lixos. É comum chamarem a polícia.
No geral, a ideia de celebração natalina não é ruim, afinal, a palavra “natal” significa nascimento, o que, em um contexto de espiritualidade, traz a ideia de renovação e de recomeço, também remetendo às práticas de amorosidade e generosidade. Mas isso tudo se restringe ao campo hipotético, pois, na prática, dificilmente ocorre alguma reflexão e mudança nesse campo.
A maioria dos cristãos, aliás, nem liga pra isso. Estão mais preocupados em se ocuparem de seus próprios desejos e prazeres do que em procurar uma renovação espiritual, moral e ética. Tanto é verdade, que cerca de 60% deles elegeu o ser mais cruel e desumano da história da República, manteve-o no poder e, pior, tentou reelegê-lo mesmo depois de terem assistido ao desastre que foi seu governo.
A fraude
O Natal, a festa cristã, como eternizou Simone, é uma fraude.
Não há renovação, reflexão, solidariedade, empatia. Enfim, não há o desejo genuíno de se importar com a dor do outro, com a situação de fome e de miséria que pode estar acontecendo na sua própria rua, bairro ou cidade. Certamente, há raras e doces exceções, gente que promove campanhas de arrecadação de alimentos, que doa dinheiro, que doa brinquedos etc. Mas, no geral, a maioria se fecha em seus casulos e se esbalda na “noite feliz”.
A fome e a indiferença são lados sombrios do Natal. Isso me leva a crer que se o próprio Cristo estivesse fisicamente aqui para celebrar a data do seu nascimento, ele a rejeitaria, se sentiria muito mal. E acho, sinceramente, que ele não conseguiria digerir ou, sequer, comer qualquer um dos pratos servidos.
Portanto, não há meio termo. Sem hesitar, digo: Natal feliz é Natal sem fome. Noite feliz é noite solidária. Sem isso, o Natal será apenas uma reunião de ególatras e glutões, será apenas uma festa sombria.