Ufam forma os primeiros mestres ianomâmis da Amazônia
Odorico Yanomami, Edinho Yanomami e Modesto Yanomami são os novos mestres pelo Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na Amazônia.

Bruna Lira, da Redação do BNC Amazonas
Publicado em: 24/04/2025 às 14:43 | Atualizado em: 24/04/2025 às 14:43
Os três discentes ianomâmi do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), marcaram um feito inédito: tornaram-se os primeiros mestres da etnia ianomâmi na Amazônia brasileira.
Odorico Xamatari Hayata Yanomami, Edinho Yanomami Yarimina Xamatari e Modesto Yanomami Xamatari Amaroko são originários da região do Médio Rio Negro, mais precisamente da comunidade de Santa Isabel do Rio Negro.
Na última quarta-feira, 23 de abril, eles fizeram história para o povo ianomâmi e para toda a comunidade acadêmica da Amazônia. A cerimônia ocorreu no auditório Rio Solimões, localizado no setor norte do campus da UFAM, em Manaus, e reuniu um público expressivo.
A ocasião contou com uma banca examinadora igualmente histórica. Pela primeira vez, o líder indígena e intelectual Davi Kopenawa Yanomami — doutor honoris causa pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) — participou como arguente.
Além dele, compuseram a banca o professor doutor Paulo Roberto de Sousa (Mbo’esara Esãîã), da etnia Tremembé, e os orientadores: professor doutor Caio Augusto Teixeira Souto, professor doutor Agenor Cavalcanti de Vasconcelos Neto e professora doutora Marilene Corrêa da Silva Freitas.
Também participaram como arguidores os professores da UFAM: doutor João Gustavo Kienen, doutora Marilina Conceição Oliveira Serra Pinto e doutor Theo Machado Fellows.
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Rito acadêmico
Durante o rito acadêmico, os três mestrandos apresentaram suas pesquisas com firmeza e profundidade. Suas exposições foram acompanhadas por um público atento e emocionado, tanto presencialmente quanto online, já que o evento foi transmitido ao vivo pelo canal de YouTube do programa.
O membro externo, Davi Kopenawa afirmou que estava emocionado com a realização deste sonho.
“Eu estou sonhando acordado. Estou muito emocionado. Era isso que eu queria. Eu estou muito orgulhoso de vocês”.
Kopenawa ouviu ainda a trajetória de dificuldade enfrentada por cada ianomâmi e enfatizou que sem sofrimento não há aprendizado.
“Você sofreu, você aprendeu. Se você não sofrer, nunca vai aprender”.
Além disso, lembrou que aquele momento histórico que estava vivenciando junto aos ‘seus sobrinhos’, representava a luta do povo ianomâmi e que eles não são atrasados.
“Isso é resultado da nossa luta, é resultado da minha luta. Nós não somos atrasados, não. Vocês [homem branco] que chegaram atrasados”, finalizou.
Com isso, arguidores da banca avaliaram com muitos apontamentos a relevância de cada projeto para a sociedade acadêmica, sobretudo para os povos indígenas presentes na universidade e fora da dela. Reafirmaram a luta e o compromisso com os povos originários e a conquista de direitos nas universidades públicas brasileiras. Ao final, declararam aprovados os primeiros mestres em Sociedade e Cultura na Amazônia da região.
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Orientadores
O orientador e coordenador do programa, Caio Souto exaltou a felicidade de poder presenciar esse momento tão especial e esperado.
“Ainda não consigo mensurar. Estou emocionado, muito contente. É um evento intenso, muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Estou muito realizado tanto como coordenador como orientador de um e coorientador dos outros dois. Foram muitas dificuldades e queremos melhorar esse apoio para continuar esse belo trabalho”.
Além disso, o professor, Agenor Cavalcanti também frisou essa felicidade.
“É uma realização, é uma felicidade. Acompamhar a trajetória de dificuldades. Não é fácil para os estudantes ianomâmis sairem de seus territórios para estudarem. Foi um processo de muita dificuldade que foi superado pouco a pouco. Então com o apoio da coordenação, nós conseguimos encerrar esses trabalhos com reconhecimento público, com o auditório lotado”.

Mestres do Rio Marauiá
Os três novos mestres pertencem a dois xaponos (casas coletivas ianomâmi) localizados às margens do Rio Marauiá, no Médio Rio Negro. Essas comunidades ficam na região do município de Santa Isabel do Rio Negro, que, por sua vez, abriga diversos outros xaponos até a fronteira com a Venezuela.
Formados pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), eles concluíram a Licenciatura Indígena – Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável – com ênfase na formação Yanomami. Além da formação acadêmica, desempenham um papel essencial em suas comunidades. De um lado, atuam como professores do ensino básico em seus próprios xaponos; de outro, exercem liderança política, sendo vozes ativas na defesa de direitos e na organização social de seus povos.
Em 2023, os três ingressaram no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM). Eles fazem parte de uma turma fora de sede, sediada em São Gabriel da Cachoeira, especialmente criada para ampliar o acesso à pós-graduação por indígenas do Alto Rio Negro. Ao todo, a turma reúne 30 discentes de dez etnias diferentes, o que reforça, portanto, o caráter intercultural, plural e coletivo da formação.
Assim, sua trajetória acadêmica representa não apenas uma conquista individual, mas também um avanço significativo para a educação indígena e para a valorização dos saberes tradicionais em diálogo com o conhecimento científico.
Odorico Yanomami
O mestre Odorico Xamatari Hayata Yanomami apresentou a pesquisa “O MATOHI YANOMAMI: UMA AUTOETNOGRAFIA DO CORPO DE UM APRENDIZ DE HEKURA DO XAPONO BALAIO DO RIO MARAUIÁ”, na qual aborda sua história de iniciação para tornar-se um xamã, bem como apresenta uma classificação dos tipos de arte da cultura ianomâmi, como objetos, pinturas e adornos.Tudo aquilo que utiliza em seu corpo.
Edinho Yanomami
Edinho Yanomami Yarimina Xamatari defendeu a pesquisa entitulada “POHOROPIHIWITËRI PË Ã RII RË HAIWEI – A LÍNGUA MATERNA DOS YANOMAMI DE POHOROÁ” que aborda o tema da origem da língua Yanomami e elabora um vocabulário bilingue para facilitar seu ensino para as crianças do xapono. Ele está preocupado com as futuras gerações. Quer deixar registrada a cultura da língua para que não se perca futuramente.
Modesto Yanomami
Já o mestre Modesto Yanomami Xamatari Amaroko, apresentou “AMÕA YANOMAMI: REFLEXÕES SOBRE A FUNÇÃO E AS TRANSFORMAÇÕES DAS AMÕA (MÚSICAS) NA VIDA DO XAPONO BALAIO DO RIO MARAUIÁ”, no qual reflete sobre o risco de que os cantos tradicionais de sua cultura sejam perdidos, com a entrada dos celulares e das tecnologias do homem branco. A partir de entrevistas com parentes de dentro do xapono, ele apresenta uma classificação dos cantos, registra alguns deles em áudio, e também mostra algumas fotografias de uma festa ritual em que esses cantos são entoados.
PPGSCA no Xapono
Durante o processo de formação dos estudantes ianomâmis, a colaboração entre universidade e a dedicação dos discentes foi imprescindível. Os discentes estavam determinados a cursar a pós-graduação, mas dependiam de apoio institucional.
Com a seca severa, surgiram obstáculos. Os estudantes ficaram ilhados em seus xaponos. A logística dificultava longas estadias fora da comunidade. Além disso, questões financeiras e culturais impunham limites. Na cultura ianomâmi, o coletivo tem grande importância. Eles raramente se separam de seu povo. Por isso, ausentar-se por muito tempo era inviável.
Diante desse cenário, o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) obteve cotas de bolsa para os três discentes. O critério principal foi a residência em região de difícil acesso, abaixo de São Gabriel da Cachoeira. Com o apoio, puderam se dedicar mais à pesquisa e adquirir ferramentas essenciais, como computadores e celulares.
Ainda assim, as preocupações continuavam. Para apoiar os alunos de perto, o coordenador do PPGSCA, Caio Souto, e o professor Agenor Cavalcanti decidiram ir até o Xapono Balaio. Passaram um mês orientando, dando aulas, convivendo e aprendendo com o povo ianomâmi.
Mas a viagem exigiu perseverança. Foram necessários meses de trâmites burocráticos até conseguir autorização para entrar nas terras ianommis.
Depois disso, enfrentaram uma longa jornada: uma hora de voo de Manaus a São Gabriel da Cachoeira, 24 horas de lancha até Santa Isabel do Rio Negro e mais três dias de rabeta — um pequeno transporte fluvial — até o Xapono Balaio.
Dormiram em diferentes paradas ao longo do caminho. A alimentação e o modo de vida exigiram adaptação. Ainda assim, cada esforço valeu a pena.
Ao chegar, os professores foram calorosamente recebidos. Lideranças e moradores prepararam uma cerimônia de boas-vindas, com rituais, danças e muitos cantos para celebrar a visita.
Foto: Bruna Lira/BNC Amazonas