Tradutor indígena no serviço público deve se tornar presença obrigatória

Comissão da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei.

Tradutor indígena no serviço público deve se tornar presença obrigatória

Dassuem Nogueira , da Redação do BNC Amazonas  

Publicado em: 22/10/2024 às 18:32 | Atualizado em: 22/10/2024 às 18:32

A Comissão de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados aprovou no dia 21 de outubro texto de projeto de lei que torna obrigatória a presença de intérprete ou tradutor de línguas indígenas em órgãos públicos, concessionárias de serviços públicos e instituições essenciais à Justiça e à segurança pública.

Inclui ainda medida para autorizar expressamente a contratação de profissionais com conhecimento de línguas indígenas por meio de credenciamento.

O projeto tramita em caráter conclusivo e ainda será analisado pelas comissões de Finanças e Tributação, de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Para virar lei, precisa ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

O texto aprovado foi proposto pela relatora, deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), para o projeto de lei 4.014/2023, da deputada Célia Xakriabá (Psol-MG).

Assim, ao invés de editar uma nova lei, a relatora decidiu incluir o texto no Estatuto do Índio – este, em vias de tornar-se Estatuto dos Povos Indígenas.

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Barreira linguística

Um dos grandes entraves para o acesso as políticas públicas brasileiras pelos povos indígenas é a barreira linguística.

De acordo com o censo 2022, há no Brasil 305 etnias e 274 línguas indígenas. Isso implica que a maioria da população falante dessa variedade linguística não tem o português como seu idioma materno.

A fluência no idioma colonial é influenciada por fatores como tipo e grau de interação com não indígenas, gênero, idade, escolaridade etc.

Desse modo, o aditivo ao estatuto regulamenta uma necessidade real para acesso aos serviços públicos de parcela significativa de indígenas.

Desde 2019, a presença de tradutores ou intérpretes consta na resolução 287 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas apenas nos casos em que pessoas indígenas são parte no sistema de Justiça.

Porém, mesmo nessa esfera, a presença de tradutores não está regulamentada em relação à sua contratação ou credenciamento, previsão orçamentária, meios, prazos, atribuições etc.

No Amazonas, existe um termo de convênio entre a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e o Tribunal de Justiça (TJ-AM) que disponibiliza tradutores para os processos.

Dessa forma, o aditivo à lei em tramitação amplia o direito a tradução para todos os serviços públicos.

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Português de cadeia

Um exemplo da dificuldade imposta pela barreira linguística no acesso aos serviços públicos está no sistema de Justiça.

A resolução 287/2019, do CNJ, assegura que a pessoa indígena acusada de algum crime tem o direito a ser ouvida em seu idioma em todas as fases, desde o seu depoimento até o julgamento.

Antes disso, muitos indígenas passaram pelas fases do processo, e até pela prisão, sem direito a intérprete.

O antropólogo e advogado Felipe Jucá, em sua pesquisa sobre indígenas encarcerados em São Gabriel da Cachoeira, município do norte do Amazonas, relata que muitos indígenas tinham sua primeira “lição” de português nas celas das prisões.

Portanto, o português aprendido, relata o antropólogo, é o dialeto próprio das cadeias.

Cabe lembrar que, em 2002, São Gabriel da Cachoeira foi o primeiro município brasileiro a reconhecer três línguas indígenas como oficiais: o nheengatu, o tukano e o baníwa. Em 2017 acrescentou-se a língua yanomami.

Por isso, mesmo indígenas que vivem na cidade ou entre ela e suas aldeias, vivem muito mais entre os seus do que entre os não indígenas, falantes de português.

Desse modo, a língua portuguesa não é o idioma dominado por todos, realidade compartilhada por outros municípios.

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Justiça seja feita

Em 2019, a Resolução 287/2019, do CNJ, estabeleceu parâmetros para o tratamento de pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade.

Nela, enfatiza que o encarceramento de indígenas deve ser uma excepcionalidade e orienta que as penas sejam, preferencialmente, alternativas, respeitando suas tradições e costumes.

No artigo 5º da resolução 287/2019 consta que “A autoridade judicial buscará garantir a presença de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, em todas as etapas do processo em que a pessoa indígena figure como parte”.

Desse modo, garante o tradutor, mas não o institui como parte do serviço prestado.

Entre 2022 e 2023, o CNJ lançou materiais que explicam o funcionamento das audiências de custódia em sete línguas indígenas – tikuna, marubo, kanamari, matis, baniwa, nheengatu e tukano.

Muitos indígenas não tem conhecimento do direito a um tradutor nos processos em que são parte.

O acesso à tradução de seus direitos é um movimento recente no âmbito da Justiça.

Para se ter uma ideia, apenas em 2023 a Constituição federal foi traduzida pela primeira vez para uma língua indígena, o nheengatu.

Portanto, o texto aditivo ao Estatuto do Índio aprovado ontem, que visa a contratação de tradutores e intérpretes de línguas indígenas nos serviços públicos é um projeto para ontem.

Sejam bem-vindos

Desde setembro de 2021, o polo do alto rio Negro da Defensoria Pública do Amazonas (DPE-AM) desenvolve o programa Poranga Pesika – por uma defensoria intercultural”.

Idealizado pela defensora Isabela Sales, na época, coordenadora do polo, o programa passou a contar com falantes de línguas indígenas nos atendimentos da defensoria.

Assim, foram incluídos falantes de língua tukano, baniwa, nheengatu, hupdah e espanhol, em função de venezuelanos e colombianos que também buscam os serviços da DPE-AM, no município de São Gabriel da Cachoeira (AM).

O Poranga Pesika, que significa seja ‘bem-vindo’ em nheengatu”, ganhou o prêmio Innovare 2023 na categoria Destaque.

O prêmio reconhece tecnologias de Justiça criadas para melhorar o atendimento aos cidadãos.

A notável melhoria fez com que o projeto fosse replicado para outros lugares, como o polo de Maués (AM), onde, atualmente, a população sateré-mawé pode contar com um tradutor de sua língua no atendimento ofertado pela DPE.

Foto: Evandro Seixas – DPE/AM