Suzan Monteverde: ‘memoricídio’ prejudica identificação ancestral

Comentarista do Garantido, jornalista e pesquisadora defende quilombo e celebra papel feminino na vitória do boi.

Wilson Nogueira, da Redação do BNC Amazonas

Publicado em: 02/07/2025 às 13:00 | Atualizado em: 02/07/2025 às 16:13

A jornalista Suzan Monteverde, comentarista do boi-bumbá Garantido na TV a Crítica, detentora do direito de imagem do bumbódromo, afirmou, em entrevista ao BNC Amazonas, que o “memoricídio” dificulta a identificação ancestral dos povos originários.

Ela se refere ao processo de reconhecimento de quilombo da baixa da Xanda, pela Fundação Palmares.

O bumbá, campeão do festival de Parintins deste ano, usou o status de quilombo do lugar para sensibilizar os jurados.

O fundador do Garantido, Lindolfo Monteverde, bisavô de Suzan, tem descendência afro-indígena, identidade assumida por ela.

Hoje ao comemorar a 33ª vitória do boi-bumbá fundado pelo seu bisavô materno Lindolfo Monteverde, ela acredita que escolheu o momento certo.

“Não precisamos brigar com o tempo para conquistar vitórias”.

Suzan é neta de Antônio (Reinaldo) Monteverde, primogênito de Lindolfo, com dona Antônia Colares Monteverde. Seus pais, Antônia Monteverde e Ilmar Martins, são filhos de moradores históricos da baixa da Xanda.

Ela descende de linhagens familiar munduruku por meio do pentavô Marcelo Munduruku e afro da parte da pentavó Alexandrina Monte Verde da Silva, cujo mãe Germana da Silva era uma escravizada liberta.

Entrelaçada à história do Garantido, ela já passou pela batucada, pela cênica, recepcionou os jurados, foi fiscal de jurados e há três anos (2019, 2024 e 2025) participa da comissão de artes, seção que elabora e realiza o espetáculo de arena.

Suzan faz parte da primeira geração da baixa da Xanda que conseguiu furar a bolha da exclusão do ensino superior, em razão da instalação da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) em Parintins.

Graduada em jornalismo e mestre em ciências da comunicação, na Ufam, ela agora faz doutorado em estudos de cultura contemporânea da Universidade Federal de Mato Grasso.

O seu projeto investiga a participação das mulheres na “brincadeira” de boi.

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A entrevista

BNC Amazonas – Como se dá a escolha da comentarista?

Suzan – Quem escolhe o comentarista é a diretoria e a comissão de arte do boi-bumbá. Neste ano, Fred Góes me fez o convite em janeiro. E eu o aceitei.

BNC Amazonas – Há alguma preparação para essa função?

Suzan – Os preparativos envolvem estar ciente e consciente de todos os processos que envolvem o projeto de espetáculo. No meu caso, já conheço os artistas e sou da comunidade. Vou além de uma participação eventual, pois vivo nesse ambiente da comunidade Garantido desde que nasci. E na fase adulta passei a conhecer o espetáculo. Sei o valor que o Garantido tem para comunidade, pois sou cria desse sangue que anima o bumbá.
E mais: por fazer parte da Comissão de Arte, sei de onde nascem as ideias, os quadros artísticos e as decisões. E, também, estudo para auxiliar algumas concepções e participo da definição do espetáculo, afinal sou pesquisadora da área de cultura popular, entre as quais o boi-bumbá.

BNC Amazonas – Já deu para sentir a avaliação pelo público da tua participação na transmissão da TV?

Suzan – O feedback que ainda vem do externo, até porque a Diretoria e a Comissão ainda estão envolvidas na comemoração da vitória.
Da baixa da Xanda recebo demonstração de apreço e muitas palavras positivas pela minha participação. Na última noite, antes de entrar na transmissão, ouvi felicitações do cantor e compositor Chico da Silva, as quais me deixaram muito feliz, porque o Chico é crítico perspicaz.
Senti, também, a aprovação dos meus professores da área de comunicação. Eles ficaram muitos felizes de me ver. A impressão que tenho é que as pessoas se sentiram felizes por eu estar ocupando esse espaço.

BNC Amazonas – Li em postagens nas redes sociais que você adiou a aceitação desse convite.

Suzan – Isso, para mim, não era uma meta de vida ou sonho. Mas acredito que os espaços de visibilidade do Garantido precisam ser ocupados por quem vive a sua realidade, conhece a memória da Baixa da Xanda e pode inspirar outras pessoas da comunidade. Afinal, trata-se da representação e ocupação de um espaço construído historicamente por muitas famílias que preservam a iniciativa do meu bisavô.
A experiência também me deixou muito satisfeita. Para mim, a visibilidade na transmissão do espetáculo representa o futuro que já está presente e o passado que está vivo.
Entendo que meu corpo e fala demonstram a diversidade e a raiz de salvaguarda do boi-bumbá Garantido.

BNC Amazonas – Sua ancestralidade é afro-indígena. O que significa isso para você?

Suzan – Sou grata por ser da baixa da Xanda, por ser afro-indígena, por ser jornalista e por ter esse lugar de fala.
Sou uma mulher afro-indígena em razão da ancestralidade herdada no meu fenótipo e nas práticas cotidianas do bem-viver que almejo para este mundo. Hoje entendo que, em razão do memoricídio que se impôs à minha e a outras famílias amazônicas, demorei para me identificar assim.
Para mim, foi uma forma de mostrar que a justiça social pode ser feita, que assim como na Baixa da Xanda, devemos buscar justiça e nossos direitos sociais.
Por meio da arte podemos falar que essa vitória, a conquista do quilombo, pode ser a de outras comunidades.
Isso porque a arte sempre nos auxiliou a entender e compreender quem somos, de onde viemos e o que queremos para a humanidade, sejamos nós comunidades tradicionais, quilombolas ou indígenas.

BNC Amazonas – Qual é a sua avaliação sobre iniciativa das famílias tradicionais da baixa da Xanda de torná-la quilombo?

Suzan – Estamos resistindo diariamente para que a memória da nossa comunidade, formada por Xandas, Antônias e Marias não se evapore por revisionismo histórico tendencioso que se prolifera nesses tempos de fake news, preconceitos de raça e polaridades ideológicas.

BNC Amazonas – Como você avalia a vitória do Garantido?

Suzan – Foi a vitória de uma administração que tem muitas mulheres à frente das coordenações do Garantido. Está de voltado o orgulho de ser Garantido, por meio de uma gestão que reordenou os seguimentos do bumbá e está ciente que precisa avançar mais. Mas o melhor que poderia ser feito nas condições atuais foi executado.
Este ano, além da vitória, é um ano símbolo para todos nós, pois a Fundação Palmares reconheceu que o Garantido nasceu em um quilombo. Por isso, homenageamos o Brasil e, principalmente, a nossa comunidade e a nossa gente.

BNC Amazonas – Qual foi a estratégia para a obtenção desse resultado?

Suzan – A estratégia do Garantido deu-se pelo estudo e compreensão dos porquês da derrota do ano passado. São 21 itens e a comissão decidiu aprimorar aqueles que foram mal avaliados pelos jurados. Mas, não se tratou de dar mais atenção a uns e menos a outros. O que ocorreu foi que depositamos nossas fichas no trabalho coletivo. E deu certo! Vencemos!

Fotos: Wilson Nogueira/especial para o BNC Amazonas