Sangrenta Batalha Naval de Itacoatiara completa 93 anos
Conflito armado, na frente da cidade, deixou 60 mortos em 45 minutos de conflito e impediu chegada dos rebeldes a Manaus. Na foto, monumento à Batalha Naval de Itacoatiara

Wilson Nogueira, da Redação do BNC Amazonas
Publicado em: 08/08/2025 às 06:53 | Atualizado em: 08/08/2025 às 06:53
Professores, historiadores, intelectuais e agitadores culturais agem para manter a memória da Batalha Naval de Itacoatiara, que faz 93 anos no dia 24 deste mês.
O conflito é um respingo da Revolução de 1932 entre constitucionalistas e legalistas ocorrida, marcadamente, nos estados de São Paulo, Maracaju (Goiás) e Rio Grande do Sul.
A inusitada batalha naval no rio Amazonas, em frente da cidade de Itacoatiara, durou 45 minutos e fez ao menos 60 mortos e dezenas de feridos.
Os legalistas defendiam o golpe de 1930, que depôs o presidente eleito Washington Luís e entronizou Getúlio Vargas na presidência da República, derrotado nas urnas por Júlio Prestes.
O movimento constitucionalista, defensor da deposição de Vargas, da convocação de uma assembleia nacional e restabelecimento das eleições, eclodiu em julho de 1932, em São Paulo, e durou até outubro do mesmo ano, com pífias adesões em outras regiões do País.
Comandantes
Os legalistas do Amazonas, comandados pelo capitão de fragata Alberto Lemos Bastos, lutaram contra uma tropa de militares rebelados do Forte de Óbidos (PA), que embarcaram nos navios Jaguaribe e Andirá, sequestrados pelo constitucionalista Odorico Pompo de Oliveira, no Estreito de Braves (PA).
Pompo de Oliveira tomou de assalto as cidades de Juruti (PA) e Parintins (AM) e se preparava para invadir Itacoatiara e, depois, seguir para Manaus, a capital amazonense.
Passaram-se 93 anos, porém, a tragédia ainda é lembrada em detalhes pelos itacoatiarenses, embora menos pessoas olhem para o vasto trecho do rio a imaginar que, ali, ocorreu uma batalha naval.
As carcaças de dois navios dos constitucionalistas, um salineiro e um gaiola, dormem no fundo do Amazonas e, segundo relato de ribeirinhos da região, seus mastros ainda apareceram por alguns anos nas grandes secas.
Monumento
Em 2012, por insistência de professores e intelectuais, a prefeitura ergueu um monumento para lembrar que a cidade foi profundamente abalada por essa tragédia. A obra, assinada pelo artista itacoatiarense Thyrso Munhoz, são duas peças de metal que se cruzam assentadas sobre um pilar de cimento, com base ondulada, localizadas no começo da avenida 7 de Setembro, orla portuária da cidade.
A obra remete ao choque proposital dos navios dos legalistas, o Baependi e Ingá, ambos confiscados da empresa naval Loyd, contra as embarcações dos constitucionalistas, o Jaguaribe e o Andirá, que foram a pique.

Memória
As ações desse grupo de itacoatiarenses almejam que a batalha se torne um conhecimento comum entre a população e não seja esquecida nos arquivos das bibliotecas.
O tema tem gerado interesse de pesquisas acadêmicas, mais precisamente a partir da presença das universidades na cidade. O mesmo Thyrso Munhoz produziu um documentário com depoimento de pessoas que tiveram acesso ao tema por meio de livros ou da memória de seus ancestrais.
Entre elas está a autora de Batalha de Itacoatiara: onde o Sul se encontra com o Norte (Valer), Sylvia Aranha. O documentário de Munhoz está disponível no Youtube.
Cordel da batalha
O professor do ensino fundamental da comunidade rural do Remanso do Boto Joilson Souza, também cordelista, faz atividades escolares recorrentes sobre a batalha com os seus alunos por meio da literatura de cordel e do teatro.
Os versos de Souza destacam os principais momentos e movimentos da batalha, entre os quais o ardil cometido pelo prefeito e pelo padre da cidade, para protelar o desembarque da tropa dos constitucionalistas, que ameaçavam bombardear a cidade:
“Major Gonzaga Pinheiro
Era o prefeito da vez
Chamou o padre [Joaquim]Pereira
Que foi sábio, altivez
“Vamos ganhar um tempinhoCom conversa e fingimento”.
Com o pretexto de que a população precisava ser retirada, para que se evitasse uma carnificina, o prefeito e o padre conquistaram tempo favorável à chegada dos legalistas.
“As crianças se surpreendem com a guerra que ocorreu perto de onde elas moram e, assim, passam a conhecer a sua própria história”, enfatiza Souza.
Em seu livro paradidático Descobrindo o patrimônio Cultural de Itacoatiara, o sociólogo e escritor Eder de Castro Gama relata uma jornada de alunos em visita a monumentos históricos da cidade, guiados por um professor.
“Crianças, observem que este fato foi muito importante para o Brasil, mas é pouco divulgado. Porém, isso está mudando com vocês, porque agora vocês sabem e, como vocês são inteligentes, irão espalhar essa história para todo o mundo”, assinala um trecho do livro.
Iniciativas ainda tímidas
Em razão da sua importância histórica para o Amazonas e para o Brasil, a batalha naval de Itacoatiara deveria ser incluída no calendário de atividades escolares e culturais do poder público.
Para o presidente da Academia Itacoatiarense de Letras (AIL), Salomão Barros, as iniciativas de preservação da memória dessa tragédia partem, isoladamente, de pessoas comprometidas com a história da cidade, como são os casos dos escritores Anísio Jobim (1879-1971), Francisco Gomes, Sylvia Aranha, Eder Gama, Frank Chaves e do artista plástico Thyrso Munoz.
Thyrso, por exemplo, faz palestras sobre o monumento e roda nas escolas o filme de sua autoria que trata da batalha naval. Isso, para ele, ajuda a população a compreender a batalha no contexto da história política e econômica da então jovem república brasileira.
Afinal, o estopim da guerra foi a quebra, pelo golpe de estado, do revezamento entre políticos de São Paulo e de Minas Gerais – a era da política do café com leite – na presidência da República.
Pai para filho
Salomão Barros revelou que tomou conhecimento da batalha naval de Itacoatiara por intermédio do seu pai, José Alves Barros, o Zé Barros, que tinha oito anos de idade em 1932.
“Ele contava detalhes de quando as pessoas ouviram tiros de canhão e se espalhou a notícia da guerra que se iniciava. Naquele momento, a população correu para se abrigar no meio da floresta, nas proximidades do hoje bairro das Pedreiras, inclusive ele e seus familiares”, conta Barros.
Barros lembra que o seu pai relatava com desenvoltura os detalhes da guerra, com a citação dos nomes dos navios envolvidos e como eles se chocaram em rio aberto, com desfecho fatal para os navios Jaguaribe e Andirá.
O professor, hoje estudioso do tema, disse que a trincheira de defesa da cidade, erguida na Praia do Pecado, trecho da orla fluvial entre o Centro e o bairro Jauari, pôde ser vista por alguns anos após o episódio.
“Eles escutaram […] tiros e explosões que ecoavam ao longe”.
A professora e historiadora Maria Castro Gama disse que, em 1932, o seu pai, João Perdigão, tinha apenas 12 anos, mas guardava na memória o desenrolar da batalha como uma preciosidade. E assim ela relembra:
A batalha aconteceu em 1932, antes do meu nascimento. Quem me contou foi meu pai, Manoel Perdigão, que na época tinha apenas 12 anos. Ele e meu avô, João Perdigão, viveram de perto o clima de tensão que tomou conta da população.
Meu pai sempre dizia que, mesmo morando no interior do rio Arari, a muitos quilômetros da cidade, eles escutaram claramente os barulhos vindos do Amazonas — tiros e explosões que ecoavam ao longe. Naquele tempo, não havia rádio, veículos ou comunicação rápida. Os barcos eram poucos e a maioria se movia a remo. O silêncio predominava e qualquer ruído diferente causava alvoroço. O único meio de comunicação existente na área urbana era o telégrafo — inacessível para quem vivia no interior. Por isso, ninguém sabia ao certo o que estava acontecendo.
Preocupado, meu avô decidiu ir verificar. Ele e meu pai partiram ainda de madrugada em uma canoa, remando até a margem do rio Amazonas. Chegaram por volta das 10 horas da manhã do dia seguinte. O trajeto era longo e difícil, pois os grandes lagos da imensa Ilha Tupinambarana, naquela época, não tinham passagem direta para o rio Amazonas. Era preciso subir bastante o lago do Arari até encontrar um furo mais acima da cidade, onde pudessem encontrar outros ribeirinhos e ter alguma informação.
Essa história foi contada muitas vezes por meu pai, marcada em sua memória como um momento de medo, incerteza e coragem.
[…] Lembro-me, ainda menina, de ouvir muitos relatos além dos contados por meu pai. Dizia-se que a população de Itacoatiara entrou em pânico ao saber, por meio do telégrafo, que os navios sequestrados estavam subindo o rio. A cidade de Parintins havia enviado um telegrama urgente a Manaus avisando da movimentação dos rebeldes. Foi assim que a notícia chegou a Itacoatiara, onde o então interventor Valdemar Pedrosa recebeu a informação de que os navios pretendiam saquear as cidades em seu caminho.
Uma guarda fluvial foi posicionada nas proximidades da Ilha do Risco para monitorar a aproximação das embarcações. O medo era generalizado. A cidade não tinha como se defender e os moradores estavam aterrorizados com a possibilidade de guerra e ataques. Sabendo que as tropas legalistas estavam vindo de Manaus, o prefeito e o padre local foram até os rebeldes, liderados por Pompo, tentando ganhar tempo para que a população se escondesse e os navios defensores chegassem.
Ao meio-dia, os navios Baependi e Ingá, pertencentes a Loyd e bem armados, finalmente chegaram. Diante deles, Jaguaribe e Andirá — navios antigos, desgastados e mal equipados — não tinham chance. Assim que os defensores surgiram na curva do rio Amazonas, os tiros começaram. O estrondo ecoou pela cidade. A população, em desespero, fugiu rumo às matas na direção do rio Urubu. Muitos cavaram buracos no chão, escondendo-se dentro deles e cobrindo as entradas com folhas de palmeira. Assim ficaram por dias, temendo que a guerra chegasse à terra firme e a cidade fosse saqueada.
Apesar do terror vivido, o combate foi curto. Em cerca de 40 minutos, os navios rebeldes foram afundados. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram, mas o medo gerado naquela ocasião marcou profundamente a população por muitos anos. […]
Leitura recomendada
- – Anísio Jobim. O Amazonas e suas histórias (Valer/Manaus).
- – Eder de Castro Gama. Descobrindo o patrimônio de Itacoatiara. Edição com apoio da Lei Aldir Blanc.
- – Francisco Gomes. Cronografia de Itacoatiara (Papyros/Manaus)
- – Joilson Souza. A batalha naval de Itacoatiara. Cordel, edição do autor.
- – Sylvia Aranha. Batalha naval de Itacoatiara: onde o Sul se encontra com o Norte (Valer/ Manaus)
Foto: divulgação