Jornalista revela amor pela leitura que brotou no seringal
Terezinha Patrícia herdou da avó, salva no seringal, o amor pelos livros que a acompanha desde 1973.

Wilson Nogueira, da Redação do BNC Amazonas
Publicado em: 07/05/2025 às 14:38 | Atualizado em: 07/05/2025 às 18:58
Entre idas e boas-vindas, a jornalista aposentada Terezinha Patrícia frequenta a biblioteca do Serviço Social do Comércio (Sesc) de Manaus desde 1973.
Porém, já não se tratava de um leitora de primeira viagem. O amor à leitura vem de um fato histórico inusitado.
Seus bisavós, Manuel Félix dos Santos e Leonília dos Santos, e dois filhos ainda crianças, morreram de beribéri, doença causada pela ausência de vitamina B1 (tiamina) no organismo, no final da década de 1800, em um seringal do rio Badajós, no município de Codajás, no Amazonas.
A exceção da tragédia foi sua avó, Amélia dos Santos Viana, resgatada, milagrosamente, por seringueiros e cobradas pelos donos do seringal, Nabor de Assis e sua mulher, Josefina de Assis.
A história oral da família atesta que Amélia, ainda sem a dentição definitiva completa, foi encontrada no fundo de uma rede de dormir nos limites de suas forças. Salva, cresceu no barracão do seringalista, dono de uma estante de livros, onde se alfabetizou e tomou gosto pela leitura.
O bisavô e o bisavó de Terezinha migraram do sertão cearense para o Amazonas no primeiro ciclo da borrachas atraídas (1877-1914) atraídos pela promessa de dias melhores, assim como outros 500 mil nordestinos.
Amélia deixou a leitura como legado cultural aos seus descendentes. Terezinha conta que ela gostava de ler romances e compartilhava suas leituras com as amigas.
Terezinha é uma das cinco filhas e filhos do segundo casamento de Maria Viana de Souza, que repassou para ela e irmãos o amor da avó Amélia pelos livros.
“O prazer pela leitura foi divulgado entre nós por ela, que sempre arrumava jeito de ler. Lembro que minhas tias trocavam os livros entre si, para que todos tivessem o que ler nas horas vagas”.
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Convite
Até a década de 90 do século passado, as bibliotecas de Manaus com acervo atualizado eram raras; e, assim, foi manifestada a dificuldade técnico-financeiro de publicação de novos títulos. A logística entre sul e norte também encarecia os livros e outros impressos mais que atualmente.
Por isso, para Terezinha, então caloura do curso de Comunicação Social, da Universidade do Amazonas (UA), hoje Universidade Federal do Amazonas (Ufam), a mediação da colega de curso e bibliotecária Geraldina Cantão no empréstimo de livros da biblioteca do Sesc foi um março na história da sua relação com a leitura.
E mais: ela não precisava ir à sede da biblioteca porque a própria Geraldina lhe entregava em mãos as obras escolhidas.
“Ela me incentivou a compatibilizar o meu tempo de leitura com as tarefas acadêmicas. Não sei como isso pode ter acontecido, mas eu consegui tempo para faculdade e para a leitura”.
Um jornalista revela que foi no período da faculdade que leu, principalmente, livros dos brasileiros Graciliano Ramos (1822-1953), Machado de Assis (1839-1908) e Jorge Amado (1912-2001) e do antropólogo peruano Carlos Castañeda (1925-1998), autor de “A erva do diabo”, o primeiro título de uma série de doze.
“São clássicos da literatura brasileira que impactam o nosso pensamento e o nosso sentimento”, disse Terezinha.
Ela revela que chorou e chora lendo “Vidas secas”; que se sente parte das tramas de Machado de Assis; que caminha pela realidade da Bahia de Jorge Amado; e que viaja pelos mundos extraordinários de Castañeda.
Terezinha confirmou que esse primeiro contato com a leitura a tornou uma pessoa mais interessada pela aquisição de novos conhecimentos e mais atraída pela diversidade humana.
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Trabalho e leitura
Com o ingresso no mercado de trabalho, ela diz que ficou sem tempo para se dedicar com intensidade à leitura, porque os minutos passaram a ser escassos entre as jornadas em redações de rádio e TV.
Mas, em 2011, quando se aposentou do jornalismo impresso, passou a frequentar a biblioteca com assiduidade. A partir daí, só parou enquanto durou a pandemia da covid-19. Passada a pandemia, ela voltou para a lista dos mais presentes na sala de leitura da biblioteca.
Novas descobertas
Nessa nova fase, Terezinha diz que descobriu autores formidáveis, mas não esconde a preferência pelo português José Saramago (1922-2010), Prêmio Nobel de Literatura em 1998.
“Só um gênio pode colocar Fernando Pessoa e seus heterônimos interagindo entre si e com o próprio Saramago”, referindo-se ao livro “O ano da morte de Ricardo Reis”.
Desse autor, ela também destaca “Ensaios sobre a segunda cegueira”, “O Evangelho Jesus Cristo” e “As intermitências da morte”.
“Os três são maravilhosos. Um murro no estômago do leitor. Mas, o ‘As intermitências da morte’ é fascinante, carregado de humor e, ao mesmo tempo reflexivo. Imaginem só a morte em greve! É duro: as pessoas querem morrer, mas a morte está ausente”.
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Viajante
Terezinha não viaja apenas nos e com os livros. Aqui e acolá, solitária ou enturmada, põe as asas nos ares e os pés na estrada.
Seu passaporte registre ao menos vinte viagens internacionais. A primeira foi para o Egito, em 1993, e a mais recente para a Ilha de Páscoa, território chileno, no ano passado.
Uma das suas providências no planejamento de cada viagem é a pesquisa sobre o país a ser visitado. E, como ela ainda está em fase de adaptação à leitura virtual, os livros financeiros são as suas fontes imediatas.
“É importante ter uma visão antecipada do lugar que vamos visitar. Nenhum país é igual ao outro. O que existe no Egito não existe na Turquia ou na Grécia, e as culturas e paisagens dos três são totalmente diferentes das do Peru”.
Por que ler?
Para Terezinha, todos os vieses que estimulam a leitura desaguam em uma só sentença: o amor pelos livros. O mesmo amor que fisgou dona Amélia nos seringais do Badajós, uma leitora que nunca saiu de Codajás, mas, certamente, clara por muitos lugares do mundo por meio dos livros.
“Tenho o amor pelos livros, leio-os para conhecer e me aprofundar cada vez mais nas particularidades da condição humana. Lendo, a gente melhorou como ser humano, aprende novas palavras, aprende a escrever, aprende a não deixar a memória enferrujar; a gente se alegra, fica triste e chora”.

Biblioteca
A biblioteca do Sesc agora se chama biblioteca Thiago de Mello, homenagem ao poeta amazonense nascido em Barreirinha, em 1926, e falecido em Manaus, em 2022.
O espaço possui ao menos 18 mil títulos de obras brasileiras e autores de outras nacionalidades, que ficam à disposição dos leitores para empréstimos ou leitura presencial.
Há equipamentos de apoio à leitura e, também, para momentos de relaxamento dos seus frequentadores.
Existe, entre tantas outras, uma seção somente para obras de autores que tratam de temáticas amazônicas, uma das mais visitadas por estudantes e pesquisadores.
“Sem a biblioteca do Sesc eu não teria lido tantos livros. Não tenho condição financeira para comprá-los. Por isso, serei sempre grata ao Sesc”.
A biblioteca está sempre aberta das 9h às 21h, de segunda-feira a sábado.
Recomendação
Terezinha recomenda aos iniciantes e iniciados as seguintes obras de seus autores preferidos:
“Vidas secas” (Graciliano Ramos)
“Brás Cubas” (Machado de Assis)
“Capitães de Areia” (Jorge Amado)
“A erva do diabo” (Carlos Castañeda)
“As intermitências da morte” (José Saramago)
Fotos: Wilson Nogueira/especial para o BNC Amazonas