Indígena é estuprada por policiais do Amazonas em delegacia

Violência sexual, cárcere ilegal e omissão do Estado marcam caso revoltante em Santo Antônio do Içá, denunciado pela Defensoria Pública

Indígena é estuprada por policiais do Amazonas em delegacia

Da Redação do BNC Amazonas

Publicado em: 23/07/2025 às 09:53 | Atualizado em: 23/07/2025 às 09:53

Uma jovem mãe indígena da etnia kokama foi estuprada por ao menos quatro policiais do Amazonas e um guarda municipal enquanto esteve ilegalmente detida, por nove meses, na delegacia de Santo Antônio do Içá, no interior do estado.

A denúncia foi feita pela própria vítima à Defensoria Pública do Estado (DPE-AM), após ser transferida à unidade prisional feminina de Manaus em agosto de 2023.

Segundo a defensoria, os estupros ocorreram de forma sistemática e com brutalidade, inclusive durante o período de resguardo, com apenas 20 dias após o parto, e na presença do filho recém-nascido da vítima.

Laudo do Instituto Médico-Legal confirmou conjunção carnal e sinais de violência física, o que reforça a materialidade dos crimes, conforme a DPE.

Mais grave ainda é o contexto em que esses crimes ocorreram: a vítima, uma mulher indígena e extremamente vulnerável, foi mantida presa em cela masculina, uma violação absurda, mas comum nas pequenas cidades do interior do Amazonas, onde o sistema prisional praticamente inexiste e delegacias funcionam improvisadamente como presídio, misturando no mesmo espaço criminosos de alta periculosidade e pequenos infratores.

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Prisão ilegal e abandono

A permanência de mulheres presas junto a homens, sem vigilância, estrutura ou acompanhamento jurídico, não é uma exceção, mas regra em vários municípios do Amazonas.

No caso de Santo Antônio de Içá, a defensoria afirmou que só tomou conhecimento da violência após alertas de outras internas da unidade feminina de Manaus, que perceberam o estado emocional crítico da indígena. Ela chorava constantemente, se recusava a se alimentar e demonstrava pânico diante de qualquer interação.

Durante escuta humanizada, com apoio de psicólogas, a vítima contou os detalhes dos abusos.

Disse que era violentada com frequência, em diferentes turnos, por agentes do Estado responsáveis por sua custódia, no caso, policiais civis e um guarda municipal.

A mulher vivia sob ameaça e medo de represálias, já que seus filhos e a mãe permanecem no mesmo município dos acusados.

DPE denuncia e age

A Defensoria Pública adotou protocolos de proteção e denunciou o caso às autoridades competentes. Entre as providências:

  • Pedido de regime domiciliar para a vítima, com base em tratados internacionais e jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos;
  • Encaminhamento psicológico e médico permanentes;
  • Gravação oficial do depoimento, para evitar reiterações traumáticas;
  • Encaminhamento imediato à Delegacia da Mulher e realização de exame pericial.

Apesar da gravidade dos fatos, conforme a defensoria, até o momento não há notícia de prisão dos agressores ou responsabilização concreta. 

Um padrão de violação

Este caso do Amazonas não é isolado. A manutenção de mulheres em celas improvisadas com homens é um dos rostos mais cruéis da negligência penal no interior do Brasil, especialmente na Amazônia.

Soma-se a isso o racismo estrutural que atinge povos indígenas, e o resultado é a institucionalização da violência: estupros, prisões ilegais, abandono jurídico e psicológico, exposição de crianças, e impunidade.

“Queremos mostrar que a defensoria está atenta e ativa. O que ocorreu em Santo Antônio do Içá é inadmissível. É um crime do Estado contra uma cidadã indígena que deveria estar sob proteção, e não sob tortura”, declarou um defensor envolvido no caso, sob anonimato.

Em nota à imprensa do Amazonas (leia abaixo), a DPE reforçou que seguirá acompanhando o processo, mas cobra atuação das corregedorias da Polícia Civil, do Ministério Público, da Secretaria de Segurança Pública e do Governo do Amazonas, que até agora não se manifestaram publicamente sobre o caso.

Leia a nota da defensoria

“Defensoria Pública do Amazonas acompanha caso de estupros contra reeducanda indígena

A Defensoria Pública do Estado do Amazonas, por meio do Núcleo de Atendimento Prisional, informa que tomou conhecimento, no dia 28 de agosto de 2023, do relato de múltiplos estupros sofridos por uma reeducanda indígena da etnia Kokama durante o período em que esteve custodiada na Delegacia de Polícia do município de Santo Antônio do Içá (AM).

A reeducanda, identificada pelas iniciais L. M. S., foi transferida para a Unidade Prisional Feminina de Manaus em 27 de agosto de 2023. Embora o atendimento jurídico inicial estivesse programado para a semana seguinte, a Defensoria Pública foi acionada por outras internas diante do estado de extrema debilidade emocional da custodiada, que se mostrava abatida, chorava constantemente e se recusava a se alimentar. Diante da gravidade da situação, o atendimento foi antecipado para o dia seguinte, de forma emergencial.

Durante o atendimento, conduzido por equipe da Defensoria com o apoio de profissionais da psicologia da unidade prisional, L. M. S. relatou ter sido estuprada repetidamente, ao longo de mais de nove meses, por ao menos quatro policiais e um guarda municipal dentro da delegacia de Santo Antônio do Içá. Segundo a reeducanda, os abusos ocorreram inclusive durante o período de resguardo, apenas 20 dias após o parto, muitas vezes na presença de seu filho recém-nascido.

Após o relato, a Defensoria Pública solicitou o imediato encaminhamento da vítima à Delegacia da Mulher, onde foi realizado exame de corpo de delito no mesmo dia. O laudo pericial confirmou a ocorrência de conjunção carnal e a presença de sinais de violência.

Diante da materialidade do crime, a Defensoria adotou as seguintes providências:

1. Realização de escuta qualificada com apoio da equipe multidisciplinar e participação do Defensor Público especializado em Direitos Humanos;

2. Aplicação de protocolo humanizado para a tomada do depoimento, com perguntas pré-elaboradas e gravação oficial do ato, evitando reiterações traumáticas;

3. Encaminhamento de acompanhamento psicológico e médico contínuo à reeducanda;

4. Protocolo de pedido à Vara de Execuções Penais de cumprimento de pena em regime domiciliar, com base em tratados internacionais e na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

À época, a vítima se encontrava extremamente abalada e com receio de que, caso o caso viesse a público, houvesse retaliação por parte dos policiais envolvidos, já que sua mãe e seus filhos ainda residiam no interior do estado. Diante desse contexto de vulnerabilidade, a Defensoria Pública optou por conduzir o caso com a máxima cautela, zelando pela proteção integral da vítima e de seus familiares, ao mesmo tempo em que adotava todas as medidas legais cabíveis para garantir sua segurança e responsabilização dos autores.

A Defensoria Pública reforça a gravidade das denúncias e destaca que seguirá acompanhando o caso de forma rigorosa. A Instituição também ressalta a importância de sua presença nas unidades prisionais como instrumento de fiscalização do cumprimento dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade.

Manaus, 23 de julho de 2025

Defensoria Pública do Estado do Amazonas”.

Foto: Dacimar Carneiro, advogado/cedida ao site Sumaúma Jornalismo/reprodução Facebook