Fraudes com veículos em Manaus deixam prejuízo de R$ 500 milhões
Polícia Federal aponta envolvimento de servidor do Detran, que explicou ter desbaratado esquema desde o final do ano passado

Publicado em: 17/11/2021 às 16:47 | Atualizado em: 17/11/2021 às 16:47
Um prejuízo de R$ 500 milhões em tributos sonegados foi deixado em período de investigação sobre fraudes em veículos em Manaus.
A estimativa foi apontada pela Polícia Federal (PF) e Receita Federal, que deflagraram nesta quarta-feira (17) a Operação Francamente.
A ação foi realizada para combater uma organização criminosa que fraudava a comercialização de caminhonetes na Zona Franca de Manaus, aproveitando-se dos incentivos fiscais.
De acordo com as investigações, tais benefícios resultavam na comercialização das caminhonetes por um valor menor que o preço usual de venda das demais regiões do país, devido ao não recolhimento de tributos federais e estaduais, conforme prevê a lei.
“A legislação determina a permanência desses veículos, exclusivamente, na própria localidade e, caso haja saída para outros estados, os tributos deverão ser pagos e as restrições documentais retiradas após comprovação de regularização fiscal”.
Segundo a PF, a fraude consistia na retirada indevida dessas restrições nos sistemas do Departamento de Trânsito do Amazonas, por um servidor público envolvido no esquema criminoso, para posterior comercialização, em outros estados, por empresas e pessoas físicas.
Com a fraude, “os clientes que adquiriam caminhonetes zero quilômetro pagavam cerca de R$ 30 mil a menos por veículo”.
Os policiais federais cumpriram 23 mandados de busca e apreensão, expedidos pela 5ª Vara Federal de Cuiabá, nos estados de Mato Grosso e do Amazonas.
O nome da operação (Francamente), segundo a PF, “traduz a inconformidade das condutas delituosas na região da Zona Franca de Manaus”.
Nota do Detran
O Departamento Estadual de Trânsito do Amazonas (Detran-AM) informou, por meio de nota, que as investigações que deram base para a operação foram iniciadas pelo Detran-AM, que, em dezembro do 2020, “cortou na própria carne ao deflagrar, em parceria com a Polícia Civil, uma operação que pôs fim a um esquema que fraudou mais de R$ 30 milhões em impostos estaduais e federais”.
Segundo o Detran, na época, 26 pessoas foram presas, entre elas despachantes veiculares, servidores do órgão, estagiários e ex-servidores.
“Todas as pessoas presas ligadas ao Detran-AM foram desligadas do órgão logo após a operação, ainda em 2020”.
De acordo com a nota, desde a descoberta da fraude, o diretor-presidente do Detran-AM, Rodrigo de Sá, “determinou mudanças no sistema para que a prática não mais ocorresse. O órgão estadual seguirá colaborando com as autoridades para que todos os envolvidos nesse crime sejam devidamente responsabilizados”.
Leia mais
Operação que chegou à Braga Veículos foi iniciada pelo Detran-AM
Polícia e Receita Federal fazem operação em locadoras de Manaus
Loja da família de Eduardo Braga é principal alvo de operação federal no AM
Como tudo começou
Em 8 de julho do ano passado, durante uma abordagem ao motorista de um caminhão cegonha, no posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF) em Cáceres (MT), foi verificado que os três veículos novos que estavam sendo transportados vinham da Zona Franca de Manaus.
Os policiais suspeitaram de irregularidades nos Certificados de Registro de Licenciamento de Veículos (CRLV) devido à origem e à característica dos automóveis, sendo duas S10 e uma Hilux, todas zero-quilômetro.
As irregularidades foram confirmadas pela Inspetoria da Receita Federal em Cáceres.
Os veículos tiveram origem em uma área beneficiada por incentivos fiscais e seus emplacamentos foram realizados sem as anotações das restrições tributárias, indicando possível fraude na emissão dos documentos de licenciamento.
De acordo com a Receita Federal, nos documentos dos veículos novos, originários ou que passam a integrar a região da Zona Franca de Manaus, é obrigatória a anotação de restrição tributária, indicando que esses veículos gozaram de benefícios fiscais, como a isenção de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), redução das alíquotas de PIS e Cofins a zero, além da diminuição da base de cálculo do ICMS.
Assim, os valores finais de comercialização acabam sendo bem inferiores aos praticados nas demais regiões do país, cerca de R$ 30 mil por caminhonete.
Todavia, os benefícios fiscais ficam condicionados ao uso do bem na área favorecida, ou seja, na Zona Franca, de forma que os veículos não podem ser retirados dessa região sem o devido pagamento dos tributos isentados ou com alíquota zero.
Para que os veículos sejam levados para outras regiões do Brasil é preciso que haja formalização prévia do processo administrativo perante a Receita Federal, que poderá ou não retirar a restrição tributária no CRLV.
A retirada da restrição poderá ocorrer por meio do pagamento dos tributos devidos, ou pelo uso do veículo no prazo de três anos, que desobriga o recolhimento do IPI pela pessoa interessada. No caso do Cofins, PIS e ICMS, estes deverão ser pagos de forma integral para a retirada do veículo da Zona Franca.
Sobre as investigações
Com relação aos três veículos citados, todos estavam irregulares de acordo com as condições acima explicadas. Além disso, um dos veículos, modelo 2020/2020, estava registrado em nome de uma pessoa falecida em 2019.
A partir da constatação das irregularidades, e da aceitação do pedido do MPF para a quebra do sigilo fiscal dos envolvidos, a Receita Federal passou a analisar as informações encontradas, o que culminou em um novo pedido, mas desta vez para ampliação do número de envolvidos e também do período de tempo.
De posse das informações, a Receita Federal apontou que, no prazo de cinco anos, aproximadamente mil caminhonetes, considerando apenas um modelo, foram comercializadas ilegalmente por três concessionárias de veículos amazonenses. A Receita Federal já levantou cerca de 17 mil veículos nas mesmas condições.
As investigações demonstraram que os envolvidos adquiriam os veículos em seus nomes para dar baixa nas restrições tributárias no sistema do Detran/AM, mas que em seguida esses veículos eram comercializados para pessoas de outros estados da Federação.
Agindo desta forma, entre outros crimes, os investigados incorreram no delito de contrabando, ainda que não se trate de bens provenientes do exterior, haja vista a figura equiparada prevista no art. 334-A, § 1º, I, do Código Penal, conjugado com o art. 39 do Decreto-Lei 288/1967, que regulamenta a Zona Franca de Manaus.
As caminhonetes S10 identificadas com situação irregular, em outubro de 2020, estavam em circulação nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, e no Distrito Federal. Do total de 996 veículos, 331 foram emplacados em Mato Grosso.
A estimativa de tributos federais iludidos nessas operações é de R$ 30 milhões.
Atuação conjunta com Polícia Federal e MPE
A Polícia Federal protagonizou os levantamentos de campo para deflagração da Operação Francamente, em conjunto com agentes do Gaeco do MP de Mato Grosso. Na execução das buscas participam servidores da Polícia Federal, Receita Federal e do Ministério Público Estadual.
Quanto ao envolvimento do MPE já na fase investigativa, autorizada judicialmente, trata-se de medida fundamental uma vez que, somente no Mato Grosso, foram sonegados cerca de R$ 16 milhões em ICMS, tributo estadual.
Corrupção e organização criminosa
Apuraram-se fortes indícios de que alguns funcionários do Detran/AM retiraram irregularmente o gravame tributário no cadastro Renavam, de maneira a possibilitar a fraude. Por vezes, o grupo já realizava o cadastramento inicial do veículo sem a restrição administrativa.
Um dos principais operadores do esquema apresentou evidências de enriquecimento ilícito, com a aquisição de imóvel incompatível com seus rendimentos. O bem não foi declarado à Receita Federal.
Isso levou o procurador da República Valdir Monteiro Oliveira Júnior a requerer a constrição do imóvel com duplo fundamento: a modalidade especial do art. 1º do Decreto Lei 3.240/1941, aplicada quando há prejuízo à Fazenda Pública, e o sequestro pelo valor equivalente do art. 132 do Código de Processo Penal, combinado com o art. 91, § 2º do Código Penal.
Desdobramentos
Após o cumprimento dos mandados oriundos da Operação Francamente, os documentos apreendidos e demais informações obtidas serão analisados para que seja dado prosseguimento ao inquérito criminal que tramita, sob sigilo, entre o MPF e a Polícia Federal de Cáceres, vinculados à 5ª Vara da Seção Judiciária do Mato Grosso.
Ao término da investigação, com base nos dados recolhidos, o MPF poderá propor ações penais contra os envolvidos. Considerando que as provas estão compartilhadas, também poderá haver novas investigações e denúncias criminais pelo MPE, bem como lançamentos tributários pela Receita Federal do Brasil.
Foto: BNC Amazonas