‘Face da literatura do Amazonas neste século é feminina’, diz Telles
São poetas e ficcionistas que contribuem com a renovação do discurso literário contemporâneo

Wilson Nogueira, da Redação do BNC Amazonas
Publicado em: 11/03/2025 às 21:20 | Atualizado em: 12/03/2025 às 00:47
O resultado preliminar de um estudo do poeta e crítico de artes Tenório Telles revela que a face da literatura do Amazonas, neste século, é feminina.
São poetas e ficcionistas que estão inseminando a produção literária regional com temas, formas e sentidos novos, e contribuem com a renovação do discurso literário contemporâneo.
Para o escritor, essa presença criativa das mulheres, pela qualidade estética, é a grande novidade do fazer literário regional.
Ele disse que, desse levantamento de autores contemporâneos, envolvendo leitura e análise estética, dos quinze textos lidos até aqui, ao menos nove são de escritoras jovens e apresentam qualidades literárias evidentes, e concorrem, em termos de reconhecimento, por parte da crítica e dos leitores.
Afirmou ainda que continuará esse trabalho de análise da produção contemporânea. Essa presença feminina expressiva na literatura amazonense, para ele, deve-se à expansão dos cursos de Literatura e Letras das universidades públicas e privadas.
“A democratização do conhecimento e a facilidade de acesso ao ensino universitário, aos livros e à leitura são fatores determinantes no processo cultural, oportunizando o desenvolvimento das potencialidades artísticas e o despertar dos talentos”, pontua Telles.
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Confira a lista das autoras, analisadas até o momento, suas obras e suas características literárias:
Grace Cordeiro A pedra, o rio e as borboletas “A lírica dessa autora é uma das mais expressivas do grupo de poetas que poderíamos chamar de Geração 2000.
Sua lírica é marcada pelo cuidado com a linguagem, questionamento do mundo e uma sensibilidade feminina inconfundível”.
Sandra Gondinho Tocaia do norte e O negro secou “A autora continua a tradição que começa com Lourenço Amazonas, no século XVIII, com o romance “Simá”, passa pela obra de Ferreira de Castro e chega à ficção amazônica de Márcio Souza. Ela explora esses elementos ligados à ancestralidade, ao mundo indígena, o universo mitológico, mas com uma outra roupagem mais poética e cheia de humanidade”.
Priscila Lira Manual de feitiçaria, Solar “[…] em termos de criação literária, ela tem uma visão contundente do papel e da condição da mulher na sociedade contemporânea. É uma escritora de grande talento narrativo […]”.
Rita Alencar In(-)versos do meu verso “[…] acho esse trabalho novo da Rita Alencar o mais significativo e mais apurado do conjunto da sua obra, em que se apresenta mais densa e madura esteticamente, com uma forma de abordagem ousada sobre a condição feminina”.
Vera do Val Histórias do rio Negro, entre outros “[…] Ela trata das problemáticas que envolvem o universo feminino, ao abordar com coragem os desejos femininos, os prazeres, os sofrimentos e as frustrações com muita beleza e numa escritura de grande qualidade literária”.
Suzy Freitas Alerta selvagem, Carrego meus furos comigo “[…] é uma autora que tem muito potencial em termos de produção poética e ficcional. Ela é uma boa contista. Me surpreendeu muito nesse processo de leitura a força da sua palavra. Ela é jovem tem tudo para crescer literariamente”.
Pollyanna Furtado Elefantes em isopor azul, À sombra do iluminado “[…] a obra da poeta apresenta um elemento em comum com uma linhagem rica que faz parte da tradição literária mundial, a literatura reflexiva sobre o sentido da existência. A poesia dela tem um caráter filosófico que discute o aspecto ontológico da condição humana”.
Rosa Clement Reflexões do caminho: haicais “[…] é uma autora muito sofisticada, com obras voltadas para os textos curtos, especialmente o haikai. Ela propõe, na sua criação, uma reflexão sobre a vida, a partir de pequenos recortes e instantâneos da existência. Ela consegue, nos seus haikais, abordar temas amazônicos, assim como Bashô fazia no Japão retratando a paisagem japonesa. Ela elege a Amazônia como tema é da sua poesia, manifesta com rigor e delicadeza”.
Ruth Jucá Outros ventos “[…] seu livro se destaca pela economia da linguagem, trabalhando com textos curtos e fazendo uso da técnica do haikai. Se revela uma autora surpreendente no trabalho com a palavra.
Mayanna Velame Português amoroso, Cactos e tubarões “Os estudiosos apontam a segunda metade do século passado como o período de afirmação da pós-modernidade. Alguns de seus fundamentos permeiam a obra de Mayanna Velame: a intertextualidade e a ironia. Seu discurso literário é permeado pelo humor, inventividade e diálogo com a tradição”.

Destaques no século 20
No transcurso do século 20, predominaram, na produção literária do Amazonas, os autores, romancistas e poetas, e poucas mulheres estiveram representadas nesse processo histórico. Destacam-se nesse longo fluxo cultural, na opinião de Telles, escritoras como Violeta Branca, que surge em 1935, com “Ritmos de Inquieta Alegria”, Astrid Cabral, nos anos 1960, com “Alameda”, “Visgo da terra”; Maria José Hosanahh, Regina Melo, Cacilda Barboza, Maria Luiza Damasceno, Verenilde Pereira, Darlene Fernandes, Leyla Leong, Cândida Alves”.
Essas autoras, esclarece Telles, contribuíram para afirmar a presença feminina na produção regional e conseguiram repercussão do ponto de vista estético e literário, explica Telles.
Literatura masculina
Ele lembra que os anos de 1970 e 1980 foram marcados pelo protagonismo de autores vinculados ao Clube da Madrugada (CM), enquanto as mulheres tiveram uma presença significativa, mas numa posição coadjuvante.
“Não podemos esquecer que, durante o período de hegemonia do Clube, tivemos intelectuais e escritoras importantes, como Beth Azize, Neide Gondim, Artemis Veiga, merecendo atenção recente autoras talentosas como Aurolina Castro e Mady Benzecry, que produziram dentro desse recorte temporal”, explica ele.
Conquistas modernistas
Os escritores do Madrugada assimilaram as conquistas modernistas, que se consolidou a partir de 1922, com a Semana da Arte Moderna de São Paulo.
“Vale registrar, entretanto, que o contexto de surgimento do Clube já é o da Geração de 45, com autores como Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto e que exerceram influência sobre a geração madrugada”, situa Telles.
Acesso ao conhecimento
Mas, a partir dos anos 2000, segundo Telles, as mulheres passaram a liderar a produção literária amazonense, em razão, principalmente, do acesso delas à formação acadêmica, participação na vida cultural e a ampliação do acesso aos livros, sobretudo com o advento das redes sociais e a circulação fácil de informações.
“É incrível como o conhecimento gera mudança social e, também, cultural. Hoje, nos cursos de Letras, há mais mulheres que homens. O acesso ao ensino superior contribuiu muito para o despertar dessas potencialidades criativas e, desse modo, a literatura do início deste século 21 no Amazonas tem face feminina”, disse o crítico.
Telles adianta que o estudo mostra, também, que elas trazem referências, vozes e percepções novas, bem diferentes daquilo que foi a literatura até o final do século 20, no Amazonas.
Escritoras pos-modernistas
Ainda segundo ele, “a literatura feminina atual tem um caráter mais pós-modernista, uma vez que sai da regionalidade e parte para discutir questões inerentes à condição das mulheres no nosso tempo, os temas existenciais, a linguagem e a criação literária, sem descurar das implicações da presença feminina na sociedade, a luta pela representação social, pelo protagonismo e pelas questões relativas à liberdade sexual. Além dessa voz nova, nota-se um tom reflexivo e irônico na abordagem dessas novas escritoras”.
Cuidado com a linguarem
“Devo destacar três coisas nessa nova literatura: o cuidado com a linguagem, a insubmissão, a sensibilidade apurada na hora de abordar os temas eleitos e a ousadia de tratar questões relacionadas aos anseios femininos, como a liberdade sexual e o desejo de viver novas experiências em termos de subjetividade e, sobretudo, o anseio de reconhecimento”, explica Telles.
Para Telles, o estudo mostra que as autoras defendem as suas singularidades literárias sem se afastar da tradição da escrita, algumas revelando talentos criativos inquestionáveis, e explorando em seus textos as inconstâncias da vida e as contingências do ser humano.
Estudo continua
O crítico afirma que continua esse levantamento da nova produção literária do Amazonas e que já identificou talentos novos em processo de constituição, como Gracinete Felinto, Rebeca Beatriz, Luciana Nobre, Giele Vieira, Eber Bentes, Werner Borges, Jamerson Reis, Juan Pablo Gomes, entre outras, que serão comentados brevemente num estudo que está preparando. E nesse aspecto, não são só mulheres.
Os bons ventos estão soprando a favor da literatura que se produz atualmente em âmbito regional.
“Para inovar e transgredir a tradição, é necessário, primeiramente, conhecê-la. Não há como fazer literatura transgressora, por exemplo, sem o conhecimento da língua, na qual se escreve”, pontuou.
E isso as novas autoras amazonenses, que ajudam a escrever esse capítulo novo da história literária regional, têm de sobra.
Fotos: reprodução