Amazônia: proteção à ayahuasca preocupa povos indígenas

Conferência criou conselho de líderes espirituais para representar interesses indígenas na propriedade intelectual do chá medicinal

Dassuem Nogueira, da Redação do BNC Amazonas

Publicado em: 11/02/2025 às 21:16 | Atualizado em: 11/02/2025 às 22:17

Entre os dias 24 e 30 de janeiro deste ano aconteceu a 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca, na aldeia sagrada do povo yawanawa, a terra indígena Rio Gregório, no município de Tarauacá, no Acre, na Amazônia brasileira.

O evento foi coordenado pelo Instituto Yorenka Tasorentsi (IYT), Instituto Nixiwaka e da Cooperativa Yawanawa. 

A conferência contou com a participação de 34 povos do Brasil e de outros países como Colômbia, Peru, México, Guatemala, Indonésia, Egito e Estados Unidos. 

Foram cerca de 285 participantes, sendo 207 indígenas e 78 não indígenas, entre os quais representantes de organizações indígenas, parceiros institucionais, pesquisadores e convidados.

A carta publicada com os principais debates da conferência aponta que os povos indígenas do Brasil estão preocupados com a proteção do patrimônio genético e dos direitos coletivos de propriedade intelectual sobre o chá ayahuasca e medicinas associadas. 

A conferência deliberou ainda a criação do conselho de lideranças espirituais indígenas para dialogar e representar os interesses dos povos relacionados à ayahuasca.

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A carta

A carta da 5ª Conferência Indígena da Ayahuasca apresenta 15 tópicos contendo posicionamentos, alertas, indica preocupações e prioridades.

Está claro que a ênfase na proteção de seus direitos sobre propriedade intelectual e patrimônio genético da ayahuasca está relacionada aos casos de tentativas de criação de patentes por parte de não-indígenas, assim como a produção, venda e uso indevido das medicinas tradicionais.

Desde a década de 90, a indústria farmacêutica passou a tentar transformá-la em medicamento industrializado, desconsiderando os povos indígenas que tem sua cultura e saberes protegidos por acordos internacionais.

Por isso, as principais demandas deliberações da conferência vão na direção de pressionarem as casas legislativas (estaduais e federal) para criação de leis de proteção ao acesso, uso e repartição de benefícios oriundos à ayahuasca. 

A carta também pede a regulação do seu transporte com objetivo de não criminalizar os indígenas nesse ato e inibir não-indígenas desautorizados a fazê-lo.

Pedem ainda que os pesquisadores de diferentes áreas trabalhem com ética, consulta e anuência dos povos indígenas. 

Por isso, o documento prevê a criação de uma plataforma de comunicação na internet para acolher as denúncias.

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Líderes mulheres

Chama atenção que o documento se alinhe ao crescente movimento de reconhecimento da existência e protagonismo das mulheres como lideranças espirituais. 

O que, por sua vez, é provocado pelo movimento das mulheres indígenas.

O grupo de líderes espirituais formado por homens, em sua maioria, se compromete com maior participação das mulheres nas conferências seguintes, nas decisões e na composição do conselho de lideranças espirituais indígenas.

Conselho do sagrado

Com objetivo de encaminhar as deliberações da conferência, os participantes compreenderam que será necessário criar um conselho de lideranças espirituais indígenas.

A organização terá como finalidade trabalhar na criação de um código de ética sobre o uso responsável da ayahuasca, pesquisa, transporte e proteção desse conhecimento tradicional.

Desse modo, as lideranças espirituais indígenas do Brasil poderão se articular aos debates internacionais e firmar ações conjuntas com povos indígenas de outros países da Amazônia.

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Sobre a ayahuasca

O termo ayahuasca é utilizado de modo genérico para denominar o chá feito com o cipó Banisteriopsis caapi e as folhas do arbusto Psycotria viridis, popularmente conhecidos na Amazônia brasileira como cipó mariri e chacrona. 

O chá possui propriedades enteógenas que, segundo a compreensão biomédica, causa alucinações, sensação de vigilância e estimulação sensorial por um certo período de tempo.

Contudo, seu uso é milenarmente feito em rituais sagrados dos povos amazônicos e andinos, na América do Sul, e possui significados para além de seus efeitos no corpo. 

Para esses povos, o seu uso está relacionado à formação de especialistas de cura, conhecidos genericamente como xamãs; processos de diagnóstico, tratamento e cura de doenças; manutenção do equilíbrio das relações com seres invisíveis que coabitam o mundo com seres visíveis, como humanos e animais, a fim de regular o uso dos recursos comuns, como caça, pesca, retirada de madeira etc. 

Comumente, nesses rituais, o uso do chá é associado a outras medicinas. 

Há outras plantas que podem ser associadas ao chá, a depender do objetivo espiritual que se quer obter. 

Outros produtos também acompanham os rituais com ayahuasca, especialmente, o tabaco.

Os povos indígenas possuem uma variedade de termos para designar a bebida, tais como rami, kamarãpi, uni, huni, dispãnī hew, tsĩbu, yage, gaapi, kahp hayakwaska, entre outros.

Ayahuasca em religiões não indígenas

O uso da ayahuasca também foi incorporado à população rural que se formou a partir do advento da colonização. Porém, somente no Brasil, surgiram religiões que se baseiam no uso e compreensão da ayuascha em uma perspectiva não indígena. 

A partir da década de 30, surgiu em Brasiléia, Acre, a primeira religião ayahuascheira, o Santo Daime. Em seguida, surgiram a União do Vegetal e a Barquinha. E outras que, em maioria, são dissidências dessas três que são mais antigas.

Essas religiões ayahuascheiras, também conhecidas como vegetalistas, fazem o uso ritual do chá para alcançar a lucidez espiritual em uma perspectiva cristã e espírita. Embora algumas mantenham elementos rituais dos povos indígenas, como canto, dança e tabaco.

 A ayahuasca como mercadoria

Na década de 70, em meio ao movimento nova era (new age), a busca por substâncias psicoativas aumentou. 

Desse modo, substâncias de uso ritual indígena, como o peyote (tipo de cacto usado em rituais de povos da América do Norte) e a ayahuasca se popularizaram. 

Isso levou um público diferente para religiões vegetalistas e comunidades indígenas, vindo de sociedades amplamente industrializadas e urbanas. 

Tal público passou a demandar o uso da ayahuasca fora de seus espaços tradicionais.

A partir disso, fomentou-se a comercialização da ayahuasca como um produto a ser levado das comunidades indígenas. 

Na Amazônia peruana, criou-se um turismo da ayahuasca, onde centros oferecem retiros espirituais com o chá. 

Essa realidade foi denunciada, em 2024, no encontro promovido pela Asomashk, sigla para Asociación de Onanyabo Médicos Ancestrales, do povo shipibo konibo, da região do rio Ucayali.

Segundo reportagem da revista Carta Capital, os líderes espirituais shippibo konibo expressaram preocupação porque o aumento do consumo da ayahuasca não vem sendo acompanhado pelo cultivo de seus insumos.

Ao retirar da natureza um volume maior do que existe, os povos indígenas peruanos receiam ficar sem os insumos da ayahuasca, prática que foi denominada por eles de extrativismo espiritual.

Foto: reprodução/Biraci Junior Yawanawá