Moradores de reserva no Amazonas atestam: calor já afeta a floresta em pé
“Não tem como fazer uma barreira para a fuligem, para a fumaça, para a poluição. Ela vai de um canto para outro”.

Ednilson Maciel, por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 18/09/2024 às 16:34 | Atualizado em: 18/09/2024 às 17:10
A reserva de desenvolvimento sustentável Uatumã foi criada em 2004 para compensar o impacto ambiental gerado pela hidrelétrica de Balbina, em Presidente Figueiredo, no Amazonas.
Mas, mesmo os territórios protegidos, como as unidades de conservação na Amazônia, não escapam às mudanças climáticas.
A professora Elizângela Cavalcante, de 51 anos, moradora da comunidade São Francisco do Caribi, localizada na reserva Uatumã, sentencia:
“Não tem como fazer uma barreira para a fuligem, para a fumaça, para a poluição. Ela vai de um canto para outro”.
Na segunda semana de setembro, o rio Uatumã já alcançava níveis de descida correspondente ao final do mês de outubro, o ápice da vazante em anos comuns.
Contudo, os moradores das 20 comunidades da reserva do Uatumã ainda não se recuperaram da seca no ano passado.
“É lamentável, é lamentável mesmo, porque a gente sabe que a seca vai trazer uma consequência para o ano seguinte e, assim, os nossos problemas estão só aumentando”, disse a professora.
Atualmente, os comunitários se questionam como irão passar por mais uma forte estiagem:
“Eu fico pensando em como vou sobreviver aqui, em dois ou três anos. Neste ano eu estou esperando secar mais um pouquinho para cavar mais uma cacimba para ver se, no próximo ano, nesse tempo, ainda tenho água”, disse Ernesto de Souza, 49 anos, agricultor.
A “séca” no Uatumã
Fora da Amazônia, se fala “sêca”, como substantivo, pois designa um estado perene.
Provavelmente, essa é uma extensão do modo como se abordam os períodos de “sêca” na região Nordeste.
Os ribeirinhos falam “séca”, pois conjugam o verbo secar, já que se trata de um movimento: é o rio que seca.
O período tem sido cada vez mais difícil para os ribeirinhos da Amazônia.
A comunidade do São Francisco do Caribi faz, todo final de agosto, a festa do Cajumã, junção de caju com tucumã. Essas são as frutas do verão.
Porém, os moradores contam que, neste ano, o tucumãzal “pariu pouco” e os cajus diminuíram de tamanho.
Os frutos vermelhos fazem os cajueiros espalhados pela comunidade parecerem árvores de Natal.
Dessa forma, os moradores aconselham a comê-los direto do pé no começo da noite ou da manhã. Motivo: o aquecimento fora do comum faz os cajus ficarem quentes. E, ao invés de suco, toma-se um caldo.
Os comunitários da reserva relataram ainda a morte de árvores consideradas adultas.
Orimar Sicsú, morador da comunidade de Livramento, contou que, ano passado, os açaizeiros de seu pomar, que já davam frutos, secaram.
Nesse ano, outros moradores contaram que os açaizeiros não floraram.
Os coqueiros suportam a areia quente das praias, como as que tem no rio Uatumã.
No entanto, os coqueiros plantados pela professora Elizângela morreram antes de crescer. Eles não suportaram a elevação da temperatura de agora.
“Hoje eu olho para andirobeira ali [apontando] sentindo a força do verão, ela está com as folhas todas amarronzadas. E outras plantas, como o cedro, o jatobá, todas elas estão sentindo. A gente conhece. Quando a planta está saudável, o verde dela é mais vivo. Agora, a gente está vendo que a nossa floresta não está tão verde”.

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Luz para alguns
Além das árvores, o calor intenso também afeta a vida dos comunitários.
“Antigamente, quando amanhecia, ainda tinha um friozinho. Hoje já amanhece muito quente”, disse Stefane Ribeiro, de 16 anos.
Embora façam parte do entorno da hidrelétrica de Balbina, o programa federal Luz para Todos ainda não beneficiou os moradores da reserva Uatumã.
Como resultado, o programa é, ironicamente, chamado por eles de Luz para Alguns.
As comunidades usam geradores de energia a combustível. Alguns moradores possuem placas solares de baixa potência para fazer funcionar eletrodomésticos e eletrônicos, como celulares, televisões, e máquinas de lavar. Porém, têm capacidade limitada para realizar outras atividades.
Desse modo, as alternativas para amenizar o calor, como ventiladores e ar-condicionado, não são viáveis para muitos comunitários.
“Aqui dentro, que para onde a gente olha é floresta, não era para estar com essa grande quentura. Agora imagina numa cidade que não tem floresta. Quem está no ar-condicionado, está né? Mas vai chegar numa situação que nem no ar-condicionado a pessoa vai aguentar”, disse Ernesto de Souza.
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Sentindo na pele
A professora Elizângela conta que, no ano passado, generalizaram-se os problemas de pele nas comunidades da reserva Uatumã.
Ela avalia que a água do rio esquentou muito, proporcionando a proliferação de agentes patógenos aos humanos.
Ela teme que a mesma situação se repita neste ano, já que a seca vem batendo os recordes alcançados no ano passado.
Outra preocupação é a fumaça que se alastra nesse período afetando, principalmente, os que tem doenças respiratórias e cardiovasculares.
Contudo, as unidades de pronto socorro estão distantes, pelo menos, uma hora e meia de voadeira até as sedes de Itapiranga, Silves e São Sebastião do Uatumã, com as quais se tem acesso desde a reserva.
O acesso a água nessa época torna-se um desafio. Algumas sedes comunitárias possuem poço artesiano. Com o uso de bomba d’água, ligada ao gerador de energia a combustível, é possível abastecer parte da comunidade.
Porém, o rio ainda é a fonte de água mais usada pelos moradores. Eles coletam a água de pontos mais profundos e correntes. Em seguida, esperam que os resíduos sólidos assentem no fundo das vasilhas. Por fim, usam hipoclorito ou água sanitária para sanitizar a água de beber.
Com a seca severa, o uso da água do Uatumã fica inviável. Assim, recorrem à água das cacimbas ou dos igarapés menores. Mesmo assim, tais fontes correm o risco de secar.
A vida de toda a região amazônica está piorando ao longo dos anos. Mesmo territórios como as unidades de conservação e terras indígenas, que têm mantido a floresta em pé, não estão protegidos das mudanças climáticas.
Mas, os que vivem nesses territórios são os primeiros a senti-las e a observá-las.
Fotos: Dassuem Nogueira/especial para o BNC Amazonas