Mestre Bacuri, o primeiro marujeiro
É ele quem faz os primeiros três toques de tambor que incendeiam a Marujada de Guerra do Caprichoso. Conheça essa história

Ednilson Maciel, Por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 17/06/2024 às 13:29 | Atualizado em: 17/06/2024 às 23:46
O primeiro violinista de uma orquestra sinfônica se chama spalla. É ele quem lidera os demais músicos de seu naipe, estabelece o ritmo e faz as entradas para os outros instrumentos.
Como a grande orquestra percussiva que é, a Marujada de Guerra do boi-bumbá Caprichoso tem o seu primeiro marujeiro, o mestre Bacuri.
Um dos mais antigos instrumentistas, é ele quem faz os primeiros três toques de tambor que incendeiam a Marujada de Guerra. A sua história se entrelaça com a do próprio festival.
Em 1964, aos 14 anos, ele brincava em uma tribo de Tonto. O “índio Tonto” é uma personagem dos filmes norte-americanos de faroeste que passavam nos cinemas de Parintins naquela época.
A existência dos povos indígenas dos desertos da América do Norte encantou os jovens parintinenses. Por isso, eles passaram a organizar as tribos de Tonto para brincar nos folguedos juninos.
Bacuri se lembra que vestia uma calça azul marinho e um cocar.
Naquela época, os folguedos juninos existiam, mas não havia festival. Aos 16 anos, o jovem Raimundo Fernandes Rodrigues presenciou a primeira disputa entre os bois Caprichoso e Garantido no festival folclórico de 1966.
No ano seguinte, Bacuri começou a tocar na Marujada. Naquela época, eles mesmos fabricavam seus instrumentos. Ele conta que iniciou com a palminha, instrumento composto por dois retângulos de madeira que estalam simulando o bater das palmas das mãos.
Em seguida, passou a tocar o xeque-xeque, um tipo de chocalho, então feito com uma lata de óleo e pequenas sementes.
Se faziam os instrumentos com o que havia disponível. Bacuri já tocou até frigideira.
Ele lembra que os tambores eram feitos com latas de óleo grandes. Eles amarravam o couro com cordas. Quando o som diminuía, se aquecia o couro próximo ao fogo para retomar a potência.

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O início no tambor
Em 1983, Bacuri manifestou que queria tocar surdo ao mestre Vela, maestro que substituiu o Língua de Fogo no comando da Marujada naquele ano.
Mestre Vela passou cerca de 30 anos no comando da orquestra de marujos.
Bacuri passou a ensaiar com o tambor. Autodidata, ele observava o colega Tibério, exímio surdista, e o imitava. Até que se aperfeiçoou.
Na década de 90, ele tocou um instrumento chamado em Parintins de “treme terra”. O imenso tambor era maior que o mestre Bacuri, que o acomodava na horizontal para conseguir conduzi-lo na arena do bumbódromo.

Hoje, aos 74 anos, além de ser o marujeiro que começa a grande festa do boi Caprichoso, ele faz os reparos e o revestimento das baquetas de toda a marujada de Parintins.
Mestre Bacuri realizava essa função sem remuneração desde 1994, tamanho o esmero com a sua marujada. A partir de 2003, ele é contratado pela associação folclórica do boi-bumbá Caprichoso para realizar essas tarefas.
Desde 2007, é a baqueta do mestre Bacuri que dá os três primeiros toque de tambor da Majura de Guerra.
Desde 2022, ele passou a ser destaque no centro da arena, no início da festa. Afinal, ele encarna o sentimento de ser marujeiro, e, por isso, é reconhecido em sua comunidade.
Emocionado, Bacuri disse que quando está tocando ao lado dos marujeiros sente que “somos verdadeiros músicos, ali, um ao lado do outro, cada um no seu naipe, como numa orquestra mesmo”.

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Uma estrela azulada
O carisma em pessoa, mestre Bacuri é hoje uma celebridade azulada. Quando o visitei em sua casa, ele descansava em sua rede após gravação para programa de TV local.
Ele fez questão da presença de sua esposa, dona Raquel Vidinha, 53 anos. Ao sentar-se para acompanhar a entrevista, ela diz que falará pouco, pois a estrela é ele.

Contudo, dona Raquel é quem faz a curadoria de Bacuri. Nas artes, a curadora é quem cuida das obras do acervo de um artista e faz a escolha daquelas que serão expostas.
Ela tem guardadas todas as fantasias, camisas temáticas, fotografias e menções honrosas do marido. Raquel já parou de contar quantas das peças tem em seu acervo. Com certeza, mais de 300 peças, ela diz.
Quando Bacuri é procurado por jornalistas e pesquisadores, Raquel monta uma pequena exposição com algumas delas na varanda de sua casa.
A casa de Bacuri e Raquel é um grande acervo da história da Marujada de Guerra e da memória azul do festival folclórico de Parintins.

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Filho da Francesa
Seu Bacuri não é apenas filho da Francesa, reduto do boi Caprichoso. Ele é sobrinho-neto das francesas que deram nome ao bairro.
No começo do século passado, chegaram a Parintins três francesas. Dona Benedita Dudet (dudê) chegou na ilha junto ao marido, José Rodrigues, filho de portugueses. Eles são avós paternos de Bacuri.
As outras duas irmãs Dudet, que Bacuri não recordava o nome, vieram com o casal. Elas se estabeleceram na lagoa onde finda a avenida Amazonas, do lado oposto onde hoje é a loja Casa Góes.
As irmãs francesas abriram um comércio onde vendiam bebida, refeições e promoviam festas. Chegaram a ser entendidas como prostitutas, já que não era honroso mulheres serem donas de bares naquela época.
O lugar de divertimento ficou conhecido na boêmia local. Quando se combinavam de ir ao comércio das irmãs, se dizia “Vamos lá na francesa!”. A região onde era o bar ficou conhecida como lagoa da Francesa. E o bairro onde ficam as duas margens também. Lá nasceu o boi bumbá Caprichoso.
Fotos: Dassuem Nogueira/especial para o BNC Amazonas