Mato Grosso do Sul: subdesenvolvimento e “genocíndio” 

O flagelo da fome atinge moradores das periferias de cidades “riquíssimas” como Dourados, a segunda maior cidade do estado, cuja renda per capta é de R$ 26.908,71.

Mato Grosso do Sul: subdesenvolvimento e “genocíndio” 

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 03/09/2022 às 10:21 | Atualizado em: 03/09/2022 às 10:21

Apesar de sua enorme produção agropecuária e de sua sociobiodiversidade complexa, o estado de Mato Grosso do Sul é um estado subdesenvolvido. Afirmo isso baseado na ideia de desenvolvimento como liberdade, do economista indiano Amartya Sen. 

O autor e ganhador do Nobel de Economia de 1998, no livro “Desenvolvimento como liberdade” (2000), afirma que o desenvolvimento não pode ser medido apenas pelo “aumento do Produto Nacional Bruto (PNB), pelo aumento das rendas pessoais, industrialização, avanços tecnológicos e modernização social”. Na sua concepção, o desenvolvimento precisa ser visto “como um processo de expansão das liberdades”.

Para o economista, uma sociedade verdadeiramente desenvolvida é aquela que conseguiu expandir a liberdade individual para além da possibilidade de aquisição de bens tangíveis. Ele chama a atenção para a necessidade de liberdade política e econômica para se inserir no mercado, bem como para participar das escolhas sociais e das tomadas de decisões públicas. 

Para Sen, o desenvolvimento “requer que se removam as principais fontes de privação de liberdades: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos”. 

Segundo ele, “o que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberdades políticas, poderes sociais e por condições habilitadoras como boa saúde, educação básica e incentivo e aperfeiçoamento de iniciativas”.  

Em resumo, digo eu, não basta apenas desenvolvimento econômico, este, se apartado da promoção das liberdades e da criação de igualdade de oportunidades para a emancipação das pessoas, será apenas produção de riqueza carente de perspectiva ontológica e teleológica.

É exatamente isso que ocorre em Mato Grosso do Sul, o estado do agronegócio, cujo PIB do ano de 2019, segundo o IBGE, foi R$ 106,9 bilhões e cuja previsão pra 2022 é de R$150 bilhões de reais.

Entretanto, tendo como referência a ideia de “desenvolvimento como liberdade” de Sen, vemos que essas cifras não mudam a condição de estado subdesenvolvido de Mato Grosso do Sul. As privações relacionadas à ausência de serviços públicos eficientes, a negação de liberdade política, de participação social e comunitária, dentre outras, atingem, de forma cruel, por exemplo, as populações indígenas desse estado.

A infraestrutura de transporte de cargas e de passageiros é péssima, não havendo uma única rodovia segura no estado. O sistema de internet e telefonia celular no interior é precário, não condizendo com um PIB tão volumoso. Ainda, o flagelo da fome atinge moradores das periferias de cidades “riquíssimas” como Dourados, a segunda maior cidade do estado, cuja renda per capta é de R$ 26.908,71. 

Pela lente do economista ortodoxo, Dourados seria uma cidade rica. Todavia, por negar a liberdade econômica, política e social das populações indígenas rurais e urbanas, impedindo-as de saciarem a fome que as assola, seria, portanto, pela moderna teoria econômica, uma cidade subdesenvolvida, uma vez que o desenvolvimento não tem produzido liberdade.  

Nesse cenário, a realidade de miséria e de fome das populações indígenas que habitam o município e a cidade de Dourados foram retratadas com maestria por Emmanuel Marinho em seu poema Genocíndio, onde uma criança faminta pergunta: 

Tem pão velho?

Não, criança

Tem o pão que o diabo amassou

Tem sangue de índios nas ruas

E quando é noite

A lua geme aflita. 

[…]

Tem pão?

Pão não!

Tem pão velho?

Tem sua fome travestida de trapos

Nas calçadas

Que tragam seus pezinhos

De anjo faminto e frágil

Pedindo pão velho pela vida

Temos luzes em óperas avenidas

Temos índias suicidas

Mas não temos pão.

No estado onde o agronegócio “é pop, é tech, é tudo”, é um disparate não haver pão para as crianças indígenas, ainda que sobre reacionarismo, pseudoconservadorismo e pseudopatriotismo. 

Assim, como dito no início deste texto, mesmo com toda a pujança agropecuária, o estado de Mato Grosso do Sul pode ser considerado um estado subdesenvolvido já que falta criar e ampliar as liberdades, conforme a ideia de Amartya Sen. Sem isso, o estado pode ter tudo, menos um real desenvolvimento.

Sociólogo*