Manaus não gosta de banho
Na foto, balneário Ponte da Bolívia, opção de lazer de Manaus, destruída com a poluição dos igarapés a partir do fim dos anos de 1980

Neuton Correa
Publicado em: 05/06/2021 às 04:34 | Atualizado em: 24/09/2021 às 17:49
Aldenor Ferreira*
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A cidade de Manaus foi fundada em 24 de outubro de 1669, às margens do rio Negro. Paradoxalmente à importância simbólica da água para a região, possui uma longa tradição de eliminação de seus balneários, ou simplesmente, banhos.
A negação da água se materializa em sua própria arquitetura urbana.
A cidade desenvolveu-se de costas para o rio, fato raro quando se trata de municípios amazonenses cuja configuração urbana é sempre voltada para a beira do rio, nada mais justo, afinal, lá, “o rio comanda a vida”, como afirma Leandro Tocantins.
Manaus está na contramão desse processo.
Todavia, alguém que ainda não visitou Manaus poderá indagar: mas uma cidade localizada às margens de um dos maiores e mais belos rios da Amazônia não tem orla fluvial? Ou, numa linguagem mais regional, “lá não tem avenida beira-rio?”.
A resposta é: não tem, ao menos não como se espera em uma cidade erigida na “terra das águas”. O que há são pontos isolados onde é possível a contemplação parcial do majestoso rio Negro.
Sua orla foi tomada por empresas da construção naval e seus estaleiros, além de transportadoras marítimas e fluviais e outros empreendimentos comerciais e industriais.
Mesmo os bairros que surgiram às margens do rio Negro, não se voltam a ele.
Dar as costas para o rio diz muito do pensamento arcaico das elites políticas que sempre administraram a cidade, planejando-a para si mesmas, excluindo a população desse planejamento, retirando dela o direito ao lazer que, na alma do povo amazonense, perpassa pelo banho de rio ou ao menos por sua simples contemplação.
Conforme a cidade foi se desenvolvendo, ela foi matando seus corpos d’água.
Começou aterrando, por exemplo, o igarapé Espírito Santo, localizado no que hoje é o centro histórico da cidade.
Com a subida das águas, este ano, o igarapé soterrado, do túmulo, mandou um recado, alagando algumas ruas do centro.
Mas não parou por aí, os famosos balneários, brilhantemente descritos na canção “Domingo de Manaus”, de Chico da Silva, foram desaparecendo à medida que a malha urbana foi se ampliando.
Na cronologia do assassinato, o Balneário do Parque Dez de Novembro, inaugurado em 1940, abastecido pelas águas então límpidas do igarapé do Mindu – que por muito tempo foi atração turística da cidade –, sucumbiu diante do esgoto e das construções irregulares a partir de 1970, sendo derradeiramente extinto no início da década de 1980.
Mesmo perante esse acontecimento, o assassinato das águas seguiu firme.
O balneário popular conhecido como “A Ponte da Bolívia” e a bela cachoeira do Tarumã também foram destruídos com o avanço desordenado da cidade, a falta de planejamento urbano e de saneamento básico, bem como pela incompetência dos gestores locais.
Dos balneários descritos por Chico da Silva, o que ainda existe é o da praia da Ponta Negra, poeticamente descrito na canção de Antônio Pereira, além de outros balneários particulares no rio Tarumã.
A Ponta Negra e o Tarumã se transformaram em refúgio de endinheirados e seus condomínios luxuosos.
Portanto, não seria interessante para essa turma ter uma orla poluída e deteriorada, por isso, a Ponta Negra já passou por várias obras de revitalização nos últimos anos.
O fato é que a cidade de Manaus sempre teve uma relação de estranhamento com a água, mesmo sendo entrecortada por ela. Para piorar, Projetos como o PROSAMIM (Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus) são guiados pela lógica do aterro e da canalização, nunca pela lógica da recuperação, da despoluição e da revitalização de suas bacias hidrográficas.
Em três fases, o PROSAMIM “entubou” os igarapés de Manaus, Bittencourt, Mestre Chico, Quarenta, São Raimundo e Educandos. Tudo feito com muito concreto e mau gosto.
O poeta Chico da Silva teria enormes dificuldades para descrever, hoje, “o domingo de Manaus”.
Não é mais possível dizer: “é um domingo de verão, estou pensando em me banhar na Ponta Negra, se não quiser eu posso dar uma chegadinha no famoso Tarumã, visito o Parque Dez e vou chegando até a Ponte da Bolívia […]”.
Isto posto, surge uma questão importante.
Seria possível Manaus ter mantido os seus “banhos” mesmo se tornando uma metrópole?
Sim, seria.
Isso ocorre em várias cidades do mundo. Mas seria algo desse tipo interessante para quem controla política e economicamente a região?
*Sociólogo