Manaus está morrendo de calor, aponta estudo inédito
A capital amazonense está entre as três com maior aumento de temperaturas no país

Mariane Veiga, por Dassuem Nogueira
Publicado em: 02/10/2024 às 23:37 | Atualizado em: 03/10/2024 às 07:36
Em estudo inédito, publicado na revista científica Plos One, em janeiro deste ano, a região metropolitana de Manaus é a 9ª entre os registros de mortes excessivas relacionadas ao calor no Brasil.
A capital amazonense está entre as três com maior aumento de altas temperaturas no país e entre as que possuem as maiores disparidades sociais, raciais e educacionais relacionadas a morte, risco excessivo e risco de morte por calor.
O artigo é resultado de uma pesquisa inédita feita pelo Laboratório de Aplicações de Satélites ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Universidade Nacional de Brasília (UnB) e a Universidade de Lisboa.
O ineditismo está em identificar mortes excessivas (calculadas pela relação entre mortes esperadas e mortes observadas) associadas ao calor entre 2000 e 2018.
Ainda que o calor excessivo atinja a todos indiscriminadamente, o estudo analisa diferentes fatores sociais, econômicos e raciais que impactam de maneira diferente distintos segmentos sociais.
O artigo defende que o calor extremo seja qualificado como um desastre ambiental e que políticas públicas sejam preparadas para lidar com suas consequências, como as de saúde e prevenção de desastres.
Para se ter uma ideia, no período do estudo, 48.075 mortes excessivas foram atribuídas a crescente alta de temperatura.
O número é 20 vezes maior do que o de mortes relacionadas a deslizamentos de terra no mesmo período.
E, por fim, ressalta que a ocorrência de eventos extremos compostos tende a aumentar o risco de mortalidade relacionada ao calor, particularmente aqueles que misturam seca, altas temperaturas e incêndios florestais, como os que vem ocorrendo no interior da Amazônia e afetam diretamente as cidades.
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Diferenças regionais
O estudo qualifica as áreas com maior aumento anual de altas temperaturas, quantidade de ondas de calor (de 3 a 5 dias) e calor extremo (maior que 5 dias).
Manaus e Belém não figuram entre as que possuem maior letalidade em função de ondas de calor. Mas, são as que mais tem sofrido com aumento anual de altas temperaturas ao longo de 18 anos.
Tal distinção se dá porque o ápice de altas temperaturas na região ocorre nos meses de setembro e outubro, durante o verão amazônico.
Nas demais, observa-se maior letalidade em eventos de ondas de calor, distribuídas ao longo do ano.
Tal diferença resulta que homens idosos pretos e pardos são os que mais morrem durante as ondas de calor em regiões metropolitanas como as do Rio de Janeiro.
Enquanto em Manaus e Belém, são as mulheres idosas pretas e pardas que mais morrem durante as altas temperaturas no verão.
De todas as regiões metropolitanas, Manaus é a que tem a menor expectativa de vida (74 anos para mulheres e 69 para os homens). Como as mulheres vivem mais, o estudo sugere que elas estejam mais suscetíveis à morte por calor em idade avançada.
Os idosos e as crianças são os mais vulneráveis. Isso porque o controle de temperatura corpórea é regulado por certos hormônios. As crianças ainda estão em desenvolvimento de tal mecanismo e este está em declínio nos idosos.
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Quem morre de calor?
O estudo utilizou dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSus) para identificar mortes relacionadas ao calor.
Os dados apontam como as principais causas de morte as doenças dos sistemas circulatório e respiratório e as neoplasias. Estas são crescimentos anormais de forma desordenada de células do organismo e podem ser benignas (não câncer) e malignas (câncer).
As neoplasias atingem maior porcentagem nas regiões metropolitanas de Brasília, Belo Horizonte, Goiânia e Manaus, onde correspondem de 28 a 30% das mortes relacionadas ao calor excessivo.
Em relação à raça, Manaus ocupa o primeiro lugar na avaliação de excesso de risco de morte (sobremortalidade), onde pretos/pardos têm 33% de diferença sobre os brancos. Seguida de 27% em Brasília, 17% em São Paulo, 15% em Belo Horizonte e 10% no Rio de Janeiro.
Quando relaciona mortes de homens à raça, Manaus figura entre as três regiões metropolitanas onde pretos e pardos morrem de calor quase duas vezes mais do que os brancos. Resultado compartilhado com Belo Horizonte e Curitiba.
Além disso, o estudo aponta maior diferença de mortes relacionadas a educação formal entre as mulheres de Manaus: as com menor escolaridade morrem cerca de 1,54 (razão entre mortes esperadas e observadas) em comparação a 0,94 com alto nível educacional.
Quando se analisa o fator idade com gênero e educação, Manaus está ao lado de Recife em primeiro lugar na sobremortalidade para o subgrupo de mulheres com 65 anos ou mais e baixo nível educacional, com 62% de prevalência.
Para se ter uma ideia, a porcentagem para a mesma relação é de 8% em São Paulo, 24% no Rio de Janeiro.
O estudo afirma que “o efeito combinado do nível educacional e das disparidades raciais nos riscos para a saúde relacionados ao calor corrobora com estudos anteriores realizados noutros locais e destaca as associações complexas entre as alterações climáticas, a justiça ambiental e o racismo ambiental, que se refere à carga desproporcional de riscos ambientais entre os grupos socioeconômicos e étnicos mais baixos”.
Com base no estudo, concluímos que a crescente das altas temperaturas na região metropolitana de Manaus durante o verão, em especial, nos meses de setembro e outubro, tem sido mais letal e perigosa, principalmente, para pretos e pardos, idosos e com baixa escolaridade quando comparados aos brancos na cidade.
Tal segmento populacional tem acesso limitado aos recursos capazes de amenizar o estresse térmico causado pelas altas temperaturas, como ar-condicionado, ventiladores, filtro solar, água encanada, água potável, etc., o que lhes coloca em risco ou os vulnerabiliza a complicações de saúde e morte.
Por isso, o estudo defende que as políticas de saúde pública se preparem para essa realidade cada dia mais visível.
A autora é antropóloga.
Foto: Euzivaldo Queiroz